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O processo na Sala dos Museus Vaticanos por supostos negócios ilícitos com fundos da Santa Sé (Vatican Media) O processo na Sala dos Museus Vaticanos por supostos negócios ilícitos com fundos da Santa Sé (Vatican Media)

Vaticano, nova investigação por "formação de quadrilha". Becciu também envolvido

No dia do interrogatório a monsenhor Perlasca, que durou seis horas, o promotor da Justiça anunciou a nova investigação: o conteúdo de um telefonema feito pelo cardeal ao Papa e obtido sem o conhecimento deste último foi tornado público. O áudio, gravado por um parente do purpurado sardo, está entre os autos de uma investigação do Ministério Público de Sassari

Salvatore Cernuzio – Vatican News

Ouça a reportagem

A gravação de uma chamada telefônica entre o cardeal Angelo Becciu e o Papa Francisco foi transmitida esta quinta-feira, 24 de novembro, na Sala multifuncional dos Museus Vaticanos, durante a trigésima sétima audiência pela gestão dos fundos da Santa Sé. Os presentes - que vieram para o interrogatório da "testemunha-chave", monsenhor Alberto Perlasca - ouviram o áudio completo no qual o cardeal pediu ao Papa, dez dias após receber alta do Gemelli e três dias antes do início do processo, que confirmasse que foi ele quem autorizou os pagamentos à administradora Cecilia Marogna para a libertação de uma freira colombiana sequestrada em Mali.

O telefonema, com mais de cinco minutos de duração, havia ocorrido em 24 de julho de 2021, às 14h55, no apartamento do cardeal na Praça do Santo Ofício, em viva-voz e gravado por uma parente de Becciu, Maria Luisa Zambrano, na presença de um homem não identificado. O "áudio", como apresentado pelo Promotor de Justiça Alessandro Diddi, foi encontrado no telefone de Zambrano pela Polícia Fiscal de Oristani, como parte de uma investigação do Ministério Público de Sassari sobre a gestão da Cooperativa Spes, conduzida pelo irmão de Becciu, Tonino, e sobre a família do purpurado.

Nova investigação

A documentação foi transmitida com rogatória ao Gabinete do Promotor de Justiça e ilustrada esta quinta-feira na Sala do Tribunal por Diddi, que explicou que este e outros materiais ativaram agora uma nova investigação no Vaticano por "formação de quadrilha", envolvendo também o cardeal Becciu.

As investigações do Ministério Público de Sassari

Ainda Diddi, listando os documentos que surgiram da rogatória de Sassari, relatou declarações do bispo emérito de Ozieri, dom Sergio Pintor, falecido em 2020, sobre as relações com a família Becciu que, segundo ele, administrava a Caritas "em nível familiar", com traços de "forte interferência nas atividades pastorais". Falou-se também de 927 documentos para o transporte de 18 mil quilos de pão produzidos pela Spes a serem entregues paróquia por paróquia, para justificar as somas pagas pela diocese à cooperativa. Os documentos, no entanto, parecem ter sido "falsificados".

Interrogatório a Perlasca

A apresentação dos novos documentos adiou o tão esperado interrogatório de monsenhor Perlasca, ex-chefe do escritório administrativo da Secretaria de Estado, por cerca de uma hora e meia. Começou às 11h15 e terminou às 17h45. Seis horas durante as quais o monsenhor de Como tocou todos os pontos fundamentais do processo: da negociação do Prédio em Londres, aos pagamentos a Marogna e à Caritas em Ozieri, das relações com Torzi e Mincione à natureza dos investimentos feitos pela Secretaria de Estado. Investimentos que ele assegurou nunca ter podido autorizar. "No escritório eu coordenava como primus inter pares". Eu não tinha nenhum poder de decisão, nem mesmo o Ior reconhecia minha assinatura. Eu expressava um parecer na ordem de ajudar e não de substituir a responsabilidade que pertence ao papel e ao salário do superior". As atividades financeiras estavam "totalmente nas mãos" de Fabrizio Tirabassi (réu): "Tentei de todas as maneiras que ele fosse substituído. Eu não gostava muito dele. Em todo caso, é preciso fazer correr os cavalos que se tem".

Relações com Mincione e o Escritório do Revisor Geral

Perlasca contou que "após as pancadas de 2008 e 2011" foi decidido fazer "investimentos mais estáveis" e abrir-se "para o setor imobiliário".  O negócio do Prédio de Londres, na Sloane Avenue, foi um deles e havia sido proposto pelo financeiro Raffaele Mincione. A Secretaria de Estado investiu em seu fundo Gof, mas recomendou evitar "especulações". Mincione, no entanto, "fazia o que queria, muitas vezes puxamos suas orelhas". Ele financiava suas atividades com a nossa parte de liquidez. Nós éramos sucatas que estavam perdendo dinheiro", disse Perlasca, voltando-se várias vezes para o próprio Mincione, sentado na última fila. No verão de 2018, a Santa Sé disse basta e decidiu deixar o fundo Gof: "A fé é infinita, a paciência é limitada".

Os levantamentos do Escritório do Revisor Geral também influenciaram esta decisão? "Absolutamente não", respondeu o monsenhor. O Escritório, que estava dando seus primeiros passos na época, "não estava muito bem na forma como interveio... Estes senhores se lançaram de cabeça em uma realidade que não conheciam. Quiseram colocar gasolina em um motor diesel".

A reunião em Londres de 2018

Em seguida, foi dado amplo espaço para a reunião em Londres de 20-23 de novembro de 2018, no final da qual foram assinados os dois acordos que estabeleceram a transferência para o fundo Gut de Gianluigi Torzi (réu). Na realidade, não era para ser assim. "Foi um encontro técnico, para tomar decisões. Deveriam trazer a propriedade total e imediata do imóvel. Ninguém estava psicologicamente pronto para sair, era simplesmente um encontro de e-s-t-u-d-o", afirmou Perlasca, explicando que ele não foi "porque mais do que a tapeçaria não poderia ter feito".

Enviei Tirabassi e Crasso como especialistas de confiança da casa com o mandato de trazer uma proposta que poderia ser avaliada pelos superiores". Isto é, pelo substituto, na época já o arcebispo Edgar Peña Parra. "Não se tratava de uma reunião de carbonários, mas de pessoas técnicas que foram a Londres em plena luz do dia para ter um encontro cujas conclusões seriam trazidas, analisadas, decifradas em casa". Em vez disso, depois de dias "agitados", voltaram para casa com um acordo-quadro. Perlasca alegou ter insistido várias vezes para se dar tempo e envolver outros especialistas. Mas Tirabassi "ao telefone dizia que era preciso concluir, estamos perdendo dinheiro, nos dão uma oportunidade numa bandeja de prata, olhe para isso, olhe para aquilo, olhe para acolá. Eu disse para mim mesmo: se os técnicos dizem que está tudo bem, está tudo bem".

As mil ações da Torzi

O acordo estabelecido em Londres previa as mil ações com direito a voto que davam a Torzi o controle total do Prédio. Foi Gianluca Dal Fabbro, uma pessoa que frequentava a Secretaria de Estado, que fez o chefe do Escritório administrativo dar-se conta do "vício" no acordo. "Ele me disse: sair daquela coisa ali lhes custará muito dinheiro". Naquele momento, descortinou-se tragicamente o cenário sobre o desastre que havia acontecido. Dal Fabbro me explicou pela primeira vez a diferença entre nossas 30 mil ações que contavam tanto quanto 2 de paus e as mil ações. Eu me senti aniquilado, me virei e disse a Tirabassi: você se dá conta do que vocês fizeram? Ele teve o bom senso de se calar".

Fraude

Perlasca decidiu denunciar Torzi: "'Isto é uma fraude'!', disse a todos, mas a maioria era do parecer que deviam pagar ou negociar. Eles me disseram: a partir de agora, não se ocupe mais da operação. Tirabassi foi em frente. Vou dizer uma coisa: "Estou muito contente". Perlasca, porém, revelou que sentiu "tristeza e raiva interior" quando, "por meios indiretos", soube que a Santa Sé havia pago a Torzi.

O pagamento a Marogna

Mais de uma hora do interrogatório ao monsenhor foi dedicada às suas relações com o cardeal Becciu, que foi recentemente condenado pelo Tribunal de Como a pagar uma indenização ao próprio Perlasca e a amiga Genoveffa Ciferri. Perlasca foi solicitado a prestar contas dos pagamentos enviados a Cecilia Marogna, a administradora originária de Cagliari que havia atuado como intermediária com sua empresa na Eslovênia para a libertação da freira colombiana. "Foi-me pedido que fizesse pagamentos para 'um referente'. Não sabia se era um homem ou uma mulher. Resgates e chantagens jamais devem ser pagos, mas mesmo assim eu disse: ok, farei a operação. Se o superior diz, você ouve. Se ele não diz, você não pergunta, você tem que saber isso. É a nossa escola".

"Cecilia Zulema"

Foi do interrogatório de 29 de abril de 2020 que Perlasca disse ter sabido "pela primeira vez que esta mulher havia feito gastos em bens de luxo.... Fui até o apartamento do cardeal para dizer ‘me enganou?’ Becciu respondeu: "se for verdade, telefonarei para ela para dizer que ela tem que devolver". Ainda sobre Marogna, Perlasca explicou que tinha chegado à Secretaria de Estado uma carta assinada por uma certa Cecilia Zulema que "se apresentava como agente da DIS e pedia uma contribuição para uma missão na Líbia". A mesma foi entregue ao então Pontifício Conselho Cor Unum: "Quando no interrogatório ouvi Cecilia Marogna, fiquei pasmo, a última coisa que eu poderia pensar é que se tratasse da mesma pessoa".

A conversa com Cantoni

Mais ainda, Perlasca respondeu à pergunta se tinha havido um pedido ao atual cardeal Oscar Cantoni, bispo de Como, "para dizer coisas diferentes à autoridade judicial". O que para os investigadores equivale ao crime de suborno. "Meu bispo me disse que Becciu havia telefonado para dizer que eu deveria retirar o que eu havia dito, caso contrário eu pegaria seis meses de cadeia. Dei um nome à operação e indiquei-o".

Jantar em Roma

O monsenhor também lembrou o jantar de setembro de 2020 com Becciu em um restaurante em Roma: "Eu o convidei para saber o que ele estava fazendo por mim". Isto é, se, como ele pediu, Becciu estava intercedendo junto ao Papa para reabilitá-lo. "Ele me falou de uma fantasmagórica comissão cardinalícia que iria tratar do caso fora do Tribunal. Eu também perguntei: mas esta freira foi libertada? É uma coisa muito longa, levará de 3 a 4 anos. Entendi que ele estava me enrolando. O que ele não entendeu é que eu não estava mais dando crédito a suas palavras, eu já havia me distanciado de uma relação de dedicação e devoção vivida durante 11 anos. E ele, a fim de expressar sua bondade para comigo, me denunciou em Como".

Esta sexta-feira, a continuação do interrogatório a Perlasca.

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25 novembro 2022, 12:00