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A entrevista na Biblioteca Apostólica do Vaticano A entrevista na Biblioteca Apostólica do Vaticano 

Mourinho em conversa com Tolentino: guerra na Ucrânia é um fracasso da humanidade

O Papa lembrou na Audiência Geral desta quarta-feira (6) que o esporte pode abrir "caminhos de concórdia entre os povos". Na conversa entre o cardeal Tolentino e José Mourinho, do time da Roma, foram enaltecidos esses valores para a educação dos jovens, mas também a relação com Deus e a figura inspiradora de Francisco, além da guerra na Ucrânia: "um fracasso em todos os níveis da humanidade", disse o técnico português.
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Andressa Collet - Vatican News

“Hoje é o Dia Mundial do Esporte para Paz e Desenvolvimento, convocado pelas Nações Unidas. Eu me dirijo aos homens e às mulheres do esporte para que, através da sua atividade, possam ser testemunhas ativas de fraternidade e de paz. O esporte, com os seus valores, pode desempenhar um papel importante no mundo, abrindo caminhos de concórdia entre os povos, desde que nunca perca a sua capacidade de gratuidade: o esporte pelo esporte, e não se torne comercial; aquele amadorismo que é típico do verdadeiro esporte.”

Assim lembrou o Papa Francisco ao final da Audiência Geral desta quarta-feira, 6 de abril e Dia Internacional do Esporte para Paz e Desenvolvimento da ONU. Já no dia anterior, o jornal L’Osservatore Romano publicou uma conversa entre o cardeal José Tolentino de Mendonça, arquivista e bibliotecário do Vaticano, e o treinador do time de futebol da Roma (AS Roma Calcio), José Mourinho, ocasião em que se falou dos valores do esporte e da educação aos jovens, mas também de temas dramáticos com a guerra na Ucrânia.

O encontro inédito entre as duas personalidades portuguesas na Biblioteca Apostólica Vaticana aconteceu em 29 de março. A conversa na língua materna dos dois, que durou quase uma hora, foi facilitada também pela ligação com o filósofo português Manuel Sérgio. Segundo o cardeal Tolentino, “um pensador no campo do esporte, da motricidade humana” e que escreve regularmente num jornal esportivo (“A Bola”), e não numa revista filosófica.

De fato, Manuel Sérgio foi o primeiro professor que Mourinho se deparou na faculdade de Educação Física e Esporte, na disciplina  de “Filosofia das Atividades Corporais”, que ensinou de maneira “concreta e direta: quem só entende de futebol, de futebol não entende nada”. E, desde lá, entre os dois, “é uma relação que não terminou, é uma relação que ainda que continua...”, “num processo permanente de aprendizagem”, comentou Mourinho, que antes de ser um treinador de alto rendimento, foi professor.

Ao ser desafiado a trabalhar com crianças com problemas motores e distúrbios psico-emocionais, confessou que não estava preparado do ponto de vista técnico:

“Consegui trabalhar bem só com base numa coisa muito simples: amor, empatia, relações humanas. E consegui coisas inimagináveis para mim que me considerava muito incapaz do ponto de vista técnico para trabalhar com aquelas crianças. Consegui coisas fantásticas só com base nas relações humanas. E eu transferindo isso para o meu trabalho nos últimos 20 anos, no esporte ao mais alto nível, sempre tive isso como um princípio básico. Não estou dizendo que sempre fui bem sucedido, mas sempre tive isso como base e Manuel Sérgio foi fundamental.”

Os portugueses na Biblioteca Apostólica
Os portugueses na Biblioteca Apostólica

Ao falar sobre “desperdício de talento” no futebol, Mourinho comentou da necessidade de procurar ser “pedagogo até o fim”: “o esporte de alto rendimento, particularmente o futebol, que é o esporte mais industrializado em todos os níveis, tem algo de cruel”. E o cardeal Tolentino complementou:

“Mas isso de não desistir, de ajudar cada um a nascer, a descobrir, a maturar, a desenvolver o seu talento... É interessante que uma das parábolas de Jesus é em torno aos talentos: e essa necessidade de cada um não enterrar o seu talento, mas maturar a sua vocação. Cada um de nós nasceu com um conjunto de aptidões e competências, e pode muito transformar a sua vida”.

O bibliotecário, então, enalteceu como “o jogo” é “humanamente riquíssimo” e citou Roger Caillois que afirma que “o jogo é uma espécie de espelho de tudo aquilo que é humano”. E, na dimensão lúdica do esporte, toca-se em algo de fundamental no humano. “De uma beleza enorme”, acrescentou Mourinho, que ajuda a valorizar inclusive as pessoas que mais ama no mundo, a família, e a relação com Deus:

“Estou me abrindo com o senhor, e consequentemente me abrindo com o mundo, mas é uma coisa muito íntima. E sem nenhuma dúvida, o futebol não é, como as pessoas pensam, a minha vida, é só uma parte importante da minha vida, mas há outra parte que é muito mais importante do que o futebol. E na minha humildade, mas ao mesmo tempo querendo manter uma relação íntima com Ele, gosto de manter uma relação quase de amizade com Ele, onde quase nos chamamos de ‘Tu’.”

Cardeal Tolentino - “E, não é por acaso que, nos últimos anos, o professor Manuel Sérgio acaba todas as entrevistas dizendo que o que mais ele precisa é de Deus. Isto é algo que me toca, na relação com ele, e toda vez que tenho a oportunidade de escutá-lo. Acha que esta ligação entre a superação e a transcendência também é relevante pra sua visão?"

Mourinho – “É algo que, de um modo mais abstrato, eu falo com os jogadores em certas ocasiões. Obviamente eu não entro no campo da religião, também porque tenho à minha frente 25 homens com diferentes tradições, diferentes crenças, mas chamo do sinal de ‘mais’, o que pode fazer a diferença. E aquilo que pode fazer a diferença é uma crença comum, em que e em quem todos dirão sim. Se tem o livre arbítrio, acredita no que quer, mais ou menos no divino, mas o ‘plus’ vem sempre um pouco dessa área que não se toca, mas se sente, é abstrato. Acredito, por exemplo, que na preparação para uma competição ao mais alto nível, que envolve pressão, responsabilidade, onde você tem que superar ou transcender, você tem que colocar algo mais do que treinou ou se preparou, e acredito que esse algo mais está muito ligado à sua espiritualidade, o que fundamentalmente alimenta para o sinal ‘mais’."

O técnico Mourinho também falou da sua relação especial com Fátima, como ponto de referência na fé, e, atualmente, com a Praça São Pedro: ambos locais que ele visita à noite, no silêncio, já que é considerada uma pessoa conhecida e, em Roma, “a máscara ajuda e a escuridão da noite também”. Ao abordarem a pandemia e a guerra na Ucrânia, uma “espécie de túnel do desespero”, descreveu Tolentino, Mourinho citou o Pontífice:

“A Sua Santidade, o Papa Francisco, diz que a guerra é um fracasso da humanidade, dos políticos. Eu penso exatamente isso, na verdade eu acho que é até um fracasso da humanidade, antes mesmo de dizer que é um fracasso político. É um fracasso brutal, são princípios que se perderam ou não se desenvolveram, foi a evolução do pensamento humano para a direção errada. É algo que é difícil de explicar. É um fracasso em todos os níveis da humanidade. É um fracasso nosso.”

Cardeal Tolentino - “O Papa Francisco é uma figura inspiradora para o senhor?”

Mourinho – “É. Ele é uma figura inspiradora para mim porque eu consigo olhar para ele e, sem ter tido obviamente a honra de conhecê-lo, mas eu o ouço e não canso de ouvir. Ouço e revejo na sua simplicidade. Vejo pela televisão, ao falar no domingo de manhã, no Angelus, e penso que se eu o tivesse na ‘minha’ igreja em Setúbal, eu o ouviria da mesma forma. Este homem "não é o Papa", figura institucional do Vaticano, é um pai, um padre de uma pequena paróquia em nosso pequeno Portugal. Vejo nele aquela simplicidade, e acho que ele é capaz de criar empatia com pessoas com fé completamente diferente da nossa.”

Tolentino mostrou a Mourinho livro do séc. 15-16 que recolhe "cantigas" medievais, mais de 1200 poemas em língua galego-portuguesa
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06 abril 2022, 11:01