Os olhos de cristal e a resposta cortante de Deus
Fábio Tucci Farah
Quando Jesus (do alto da cruz) viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: “Mulher, eis aí teu filho”. Depois disse ao discípulo: “Eis aí tua mãe”. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa. (Evangelho de São João, 19, 25-27)
Aquela cabeça decepada, chamuscada e sem olhos causa calafrios em qualquer um que cruze o seu caminho. Certamente, muitos prefeririam ignorá-la se ela não estivesse alçada a um lugar de destaque, logo na entrada, insistindo em provocar os visitantes. Aquela anfitriã inoportuna - perdoem-me a indelicadeza - é Maria, mãe de Jesus. Digo, é o que restou da Virgem após um dos atos mais violentos da história da humanidade; é a sobra que foi resgatada dos escombros da igreja católica mais emblemática do Japão, em Nagasaki, após o lançamento da bomba nuclear que devastou a outrora Roma do Oriente, em agosto de 1945.
Se no passado aquela terra já havia sido regada com o sangue de mártires (1), em pleno século XX um só golpe do império norte-americano ceifou a vida de mais de 70 mil almas (2). Algumas estavam reunidas na catedral quando a bomba explodiu a apenas 500 metros dali. A cidade portuária não era o destino da Fat Man. No derradeiro momento do ataque, porém, o céu encoberto do alvo principal, a cidade de Kokura, fez com que o bombardeiro desviasse a rota para Nagasaki. A quem diga que Deus poupou os habitantes de Kokura… E, dessa feita, teria escolhido a dedo os fiéis moradores de Nagasaki.
O doutor Paulo Nagai, um renomado médico que perdeu a mulher nesta carnificina e teve a vida devastada, esforçou-se para encontrar uma justificativa teológica. Para ele, as vítimas haviam ajudado a expiar os pecados da humanidade. Enquanto foram alçadas ao paraíso, o sacrifício involuntário teria inaugurado uma nova era de paz. E quanto aos sobreviventes: “Fomos reprovados no nosso exame de admissão ao céu”, ele teria respondido de forma bem-humorada a um amigo que, além da mulher, havia perdido também os filhos (3).
A controversa justificativa do doutor Nagai parecia satisfatória a alguém desejando superar a tragédia sem deixar apagar a chama da fé. Mas… E Deus? Ele teria oferecido alguma resposta satisfatória a esse massacre? Ao contrário do que muitos se atrevem a dizer, Ele não permaneceu em silêncio. Para ouvir a resposta de Deus, devemos seguir no encalço de um soldado que, ao retornar da guerra, visitou as ruínas da catedral de sua infância e adolescência. Além de soldado, Kaemon Naguchi exercia um ofício pouco comum em sua terra natal: era sacerdote católico.
Enquanto vasculhava os escombros da catedral de Urakami em busca de algum souvenir palpável, uma forte lembrança lhe vinha à mente. Era a última prece feita ali, ainda menino, diante da escultura da Imaculada Conceição, no altar principal. Medindo dois metros, aquela magnífica obra de arte havia sido inspirada em uma pintura do espanhol Bartolemé Esteban Murillo e tinha chegado da Itália na década de 1930: “Querida Nossa Senhora (…) esta pode ser a última oração que eu lhe ofereço nesta catedral. Mas onde quer que eu esteja, que sua proteção e orientação estejam comigo como sempre."
Décadas após aquela prece, Naguchi remexia desesperadamente as ruínas desoladoras da catedral de seus primeiros anos em busca de um sinal divino, um milagre, uma resposta do Alto... Ao cair em uma pedra, a busca finalmente parecia fadada ao fracasso. Resignado, ele passou a rezar silenciosamente. Quando menos esperava, algo atraiu sua atenção: “…vi o rosto santo da Virgem enegrecido pelo fogo, olhando para mim com um ar triste. Chorei de alegria. ‘Obrigado, Nossa Senhora. Obrigado!’” (4)
Segundo um relato fidedigno, naquele momento os olhos de cristal da cabeça decepada e chamuscada ainda brilhavam. Nagushi carregou consigo o tesouro até a cela de seu mosteiro, a mais de 2500 quilômetros dali. Não consigo enxergar a delicada ação divina no céu encoberto do alvo principal, na rota do avião ou na mão criminosa que soltou a bomba. Mas sou capaz de enxergá-Lo claramente nos escombros da desolação humana. Embora, muitas vezes, Ele pareça alheio aos esforços de mãos cansadas, seus ouvidos estão sempre atentos às súplicas de lábios trêmulos. E Ele jamais deixa de buscar cada um de nós na mais degradante escuridão. Quando tudo parece mergulhado em morte, Deus nos oferece a verdadeira vida. Em 1945, enquanto milhares alcançavam os portões do paraíso, muitos dos que foram “reprovados no exame de admissão ao céu” redescobriam o significado sublime da Páscoa cristã.
Aquela cabeça decepada e chamuscada tornou-se um símbolo da paz, um emblema da luta pela abolição das armas nucleares. A Virgem Bombardeada, como foi rebatizada, visitou o papa Bento XVI, no Vaticano (5), e aterrissou em Nova York durante a conferência da ONU sobre desarmamento nuclear, em 2010 (6). Desde o outono de 2000, porém, na maior parte do tempo, ela pode ser encontrada em um pequeno altar, na entrada da catedral reconstruída de Nagasaki. E exatamente ali, a anfitriã inoportuna insiste em provocar os visitantes. Aos afortunados que ousam encará-la, seus olhos de cristal ainda brilham e arrancam lágrimas de alegria. Aquela cabeça chamuscada e decepada não é a sobra garimpada nos escombros de um dos atos mais violentos da história da humanidade. Ela é um sinal divino, um milagre… Ela é a resposta cortante de Deus a um mundo devastado pela miséria, tristeza, destruição e morte.
(*) Fábio Tucci Farah é perito em relíquias sagradas da Arquidiocese de São Paulo, delegado brasileiro da International Crusade for Holy Relics (ICHR) e curador adjunto da Regalis Lipsanotheca, em Ourém.
(1) Sobre os primeiros mártires japoneses: https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/02/06/ss--paulo-miki-presbitero-e-companheiros--martires-japoneses.html.
(2) Neste artigo, optei pela estatística da prefeitura de Nagasaki. Maiores informações sobre a questão podem ser obtidas no sítio: https://www.peace-nagasaki.go.jp/abombrecords/b030404.html.
(3) Nagai, Paulo. Os sinos de Nagasaki. São Paulo: Flamboyant, 1968, p.158.
(4) O relato completo da descoberta da Virgem Bombardeada por Kaemon Naguchi pode ser conferido no sítio: https://udayton.edu/imri/mary/u/urakami-bombed-mary-statue.php.
(5) Em 2019, durante visita apostólica ao Japão, o papa Francisco esteve diante da Virgem Bombardeada e fez a seguinte observação: “A cruz bombardeada e a estátua de Nossa Senhora nos lembram mais uma vez do horror indescritível sofrido na própria carne pelas vítimas e suas famílias”.
(6) Em Nova York, a Virgem Bombardeada ficou em exibição na Catedral Sain Patrick durante a missa.
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