Busca

Jesus na Cruz Jesus na Cruz 

A “hora perdida” na Cruz

Em busca de uma resposta ao que se sucedeu imediatamente após a morte de Jesus, descobrimos o maior dos tesouros.

 Fábio Tucci Farah 

Relógio da Paixão. Do lava-pés ao sepultamento de Jesus, aquela janela de uma hora era um enigma intrigante. Após entregar a alma ao Pai e dar o último suspiro, Jesus permaneceria suspenso na Cruz até o golpe do soldado romano em seu peito. Da chaga aberta pela lança, o evangelista João observou jorrar água e sangue (cf. Jo 19,31). E Santos Padres, como São João Crisóstomo, enxergaram ali o sacramento do Batismo e da Eucaristia. Do lado rasgado de Cristo, brotaria a sua Igreja – a nova Eva surgindo do novo Adão.

Mas o que teria acontecido entre o momento em que Jesus expirou até o “nascimento da Igreja”? Em minha pesquisa sobre a Coroa de Espinhos, encontrei a primeira pista. Ele havia sido crucificado com uma Coroa de Espinhos em forma da tiara e do turbante que o sumo sacerdote usava para presidir as solenidades no Templo de Jerusalém, entre elas, o Yom kipur (cf. 16,4). Uma vez por ano, a maior autoridade religiosa dos judeus podia entrar sozinha na área mais sagrado do Templo, o Santo dos Santos, onde ficava custodiada a Arca da Aliança.

Não se tratava de um mero objeto devocional. Deus havia dado a Moisés instruções precisas para a sua confecção (cf. Ex 25, 10-22). Na parte de cima da arca original, dois querubins estendiam as asas sobre o propiciatório – também conhecido como Trono da Misericórdia. Deus havia escolhido aquele espaço exíguo para manifestar sua Presença ao povo da Primeira Aliança. Na época de sua confecção, a Arca da Aliança guardava as Tábuas da Lei. No tempo de São Paulo, ela havia se tornado o relicário dos maiores tesouros do Povo Eleito. As tábuas da aliança dividiam espaço com o cajado de Aarão e um vaso de ouro com maná, o pão milagroso que havia caído do céu e alimentado o povo no deserto (cf. Hb 9,4). Um grande sinal da divina Providência.

O Santo dos Santos era tão sagrado que um véu espesso o separava do resto do Templo. Apenas no Yom kipur, aquele limiar era atravessado pelo sumo sacerdote. Durante a cerimônia anual, ele oferecia sacrifícios por si, por sua casa e pelo povo. E ali, se fosse digno, poderia pronunciar o santo Nome de Deus (1). Uma única vez, uma vez por ano. No sacrifício simbólico de animais, os pecados do povo eram expiados e a aliança com o Senhor, renovada. 

Jesus
Jesus

O primeiro véu rasgado 

No instante em que Nosso Senhor expirou na Cruz, um fenômeno extraordinário foi registrado por dois evangelistas.

Jesus, porém, tornando a dar um grande grito, entregou o espírito. Nisso, o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo, a terra estremeceu e as rochas se fenderam. (Mt 27, 50-51)

Jesus, então, dando um grande grito, expirou. E o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo. O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que havia expirado desse modo, disse: “Verdadeiramente, este homem era filho de Deus.” (Mc 15, 37-29)

Segundo São Mateus e São Marcos, o véu que separava o Santos dos Santos se rasgou de cima a baixo quando Jesus deu o último suspiro na Cruz. Conforme observei em meu estudo sobre a Coroa de Espinhos, divulgado pelo Vatican News (2), o fenômeno era um sinal de que Jesus havia entrado, sim, naquela construção feita por mãos humanas para dar pleno cumprimento à promessa do Pai. E o que Ele teria feito ali? 

Interessante notar que São Vicente Ferrer observou, em um de seus sermões, que a Coroa de Espinhos – mais apropriadamente a Mitra de Espinhos – havia deixado setenta e duas lacerações sobre a cabeça de Jesus. Setenta e dois é um número simbólico e se presta a algumas interpretações. Em Os Números na Bíblia, o padre Micael de Moraes oferece uma explicação oportuna sobre o simbolismo do número setenta e dois:

O número setenta e dois dos discípulos enviados poderia ser interpretado como doze (o número do povo) multiplicado por seis (o número do ser humano). Na dimensão universalista lucana, os discípulos são enviados a tornar o povo de Deus (cf. Lc 10,1). (3)

A Coroa de Espinhos havia deixado setenta e dois ferimentos sobre a cabeça de Jesus – um número que representaria a totalidade da humanidade. Segundo o autor Alfred Edersheim, com base na literatura rabínica, o véu confeccionado para encobrir o Santo dos Santos apresentava o número setenta e dois em sua gênese. Não enxergo aqui uma mera coincidência, mas uma clara mensagem divina cosida no misterioso traçado desse véu. (4). No espaço que Deus havia escolhido para manifestar sua Presença no meio do Povo Eleito, o Sumo Sacerdote divino entrava após o sacrifício na Cruz para interceder por toda a humanidade, entregando-Se a Si mesmo como vítima em reparação perpétua pelos pecados do mundo. Mas não de forma abstrata. No mesmo lugar em que o sumo sacerdote poderia pronunciar o santo Nome de Deus, o Sumo Sacerdote divino pronunciaria o nome de cada um de seus filhos, de cada um dos homens de todos os tempos. O sacrifício na Cruz foi por cada um de nós. 

O segundo véu rasgado 

E por quanto tempo Ele ficaria no Santo dos Santos? O rasgar de outro véu nos oferece a resposta. Pelos parâmetros humanos, o Yom kippur divino teria uma curta duração. Ela iria do instante em que Nosso Senhor expirou – e o sacrifício foi consumado na Cruz – até o golpe do soldado romano. Segundo a tradição, a lança teria atingido o coração de Cristo. Naquele momento, outro véu se rasgou: Deus escancarava seu coração aos homens e, em vez de receber o sangue de animais no propiciatório da Arca da Aliança, derramava o Sangue do Filho sobre nós, no único sacrifício capaz de nos redimir plenamente. E aquele Sangue sagrado continuaria sendo oferecido aos homens na Santa Missa. Após interceder por nós no Santo dos Santos e oferecer ao Pai o próprio Sangue pela redenção de cada um de nós, Ele nos entregou a herança no Reino. 

A tradição sobre o soldado romano também carrega uma importante mensagem do Alto. Segundo o beato dominicano Jacopo de Varazze, Longino teria sido curado de um grave problema na visão assim que o Sangue de Jesus atingiu seus olhos (5). Se antes a divina Presença entre os homens era encoberta por um espesso véu e apenas um eleito poderia se aproximar de Deus, o sacrifício do Cordeiro abriu os olhos de todos os homens à Presença do Senhor – cujo nome não precisava mais ser sussurrado na penumbra do Santo dos Santos; é um Pai que pode ser chamado a qualquer hora do dia, em qualquer lugar do mundo.

Quando me debrucei sobre a “hora perdida” na Cruz, encontrei um grande tesouro. E os olhos do meu coração se abriram ao Senhor expirado na Cruz, para o qual costumo me voltar todas as noites. Apesar de fechados, seus olhos estão abertos diante do Pai. Apesar dos lábios cerrados, Ele faz uma prece fervorosa por cada um de nós, na qual Se entrega plenamente. E antes de ser tirado do madeiro sagrado, Ele nos revela a resposta do Pai. De seu coração misericordioso, todos os nossos pecados são perdoados e nós recebemos uma herança nos céus. Nessa “hora perdida”, nós ganhamos a eternidade. 

O Crucifixo do Sumo Sacerdote 

Após uma intensa meditação sobre a “hora perdida” na Cruz, enxerguei o Crucifixo do Sumo Sacerdote. Trazido à luz pelo renomado artista sacro Sérgio Prata, ele retrata o período em que Nosso Senhor expirou e compareceu diante do Pai no Santo dos Santos até o golpe que rasgou o véu de sua carne. 

Pregado com quatro cravos, conforme fontes mais antigas, o Sumo Sacerdote divino ostenta a Coroa de Espinhos em forma de mitra sacerdotal. E não é retratado na agonia que precedeu a morte. Seu rosto está ligeiramente inclinado para baixo, olhando cada um dos que buscam ali o Caminho para chegar ao céu. Em seu olhar, contemplamos a Misericórdia do Pai que acolhe as súplicas de Jesus por cada um de nós. 

No alto da Cruz, o Espírito Santo em forma de pomba nos recorda um episódio ocorrido no início da vida pública de Jesus. Ao ser batizado por São João Batista, o céu se abriu, o Espírito Santo desceu sob a forma de pomba e Deus disse: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17). 

O Espírito Santo indica que, no instante em que Cristo expirou na Cruz – e o véu do Templo se rasgou de cima a baixo – o céu também se abriu. Mas nesse momento não é Deus quem fala. E sim, o Filho. Ele nos apresenta ao pé da Cruz e diz ao Pai: “Esses são os seus filhos amados, em quem nos comprazemos”! O sacrifício da Cruz nos tornou filhos adotivos de Deus e nos abriu as portas da Casa do Pai (cf. Jo 1,12; Ef 1,5). 

O corpo repleto de chagas já exibe o golpe de São Longino, sinal de que jaz morto na Cruz. A ferida no peito, bastante evidente, nos ajuda a entrever o coração de Cristo (6). O Crucifixo do Sumo Sacerdote retrata a hora aparentemente perdida na Cruz, quando Nosso Senhor intercedia ao Pai e nos gerava como filhos do Altíssimo.

Oração a Cristo Sumo Sacerdote (7)

Senhor, ajoelhado diante de vossa Santa Cruz, vos suplico:

Vós que carregastes as nossas culpas e vos sacrificastes por nossos erros, acolhei-me debaixo de vossos pés crucificados e purificai-me com vosso preciosíssimo Sangue. 

Vós que vos apresentastes no Santo dos Santos como o Sumo Sacerdote perfeito, intercedendo por cada um de nós, abri os meus ouvidos para que eu ouça o meu nome em vossos lábios. E jamais hesite em seguir o vosso chamado. 

Vós que recebestes um golpe no peito, desvelai aos meus olhos o coração misericordioso de Deus e guardai-me em vossa santa chaga. E, nesse santo refúgio, curai as feridas profundas do meu coração e reconstruí-me como um templo digno ao Espírito Santo. 

Vós que nos recriastes à imagem e semelhança de Deus e nos gerastes na Cruz como filhos do Altíssimo, dai-me a graça de ser, neste mundo, uma testemunha fiel do tesouro preparado aos vossos santos no céu.

Vós que estais à direita do Pai e não cessais de interceder por cada de um nós, fazei-me forte para vencer às tempestades deste mundo e livrai-me das ciladas do Inimigo. Que meus passos estejam cada vez mais firmes no caminho à Jerusalém Celeste.

Vós que nos alimentastes com a verdadeira vida em sua Carne e em seu Sangue, aumentai em meu coração o desejo de participar do banquete no Reino e, enquanto não completar a corrida, fazei de mim uma fagulha de vossa Presença neste mundo e um sinal de vosso amor pelos homens.

Amém! 

Oração a Cristo Sumo Sacerdote para a conversão das almas 

Senhor, ajoelhado diante de vossa Santa Cruz:

Entrego-me inteiramente a vós como meu Senhor e Salvador. Não somente a mim, mas a todos os que se confiam às minhas preces (mencionar os nomes) e peço pela conversão dos que vagam por atalhos escuros (mencionar os nomes). Lembrastes de todos no Santo dos Santos na terra, intercedei por cada um de nós no céu, onde estais sentado à direita de Deus Pai.

Deposito aos vossos pés crucificados todos os talentos recebidos de Deus. Que não sejam enterrados neste mundo, mas rendam os frutos mais agradáveis aos olhos do Senhor. Dai-me forças para realizar todas as missões que me confiar. E que as obras de minhas mãos ajudem a erguer os olhos dos homens ao Templo Celeste.

Amém!

Notas


(1) Gniwisch, Leibel. “O Sumo Sacerdote na Tradição Judaica.” Chabad-Lubavitch Media Center, 1993-2021.
(2) Andressa Collet. “Especialista brasileiro em relíquias sagradas faz pesquisa inédita sobre Coroa de Espinhos de Jesus Cristo”. Vatican News, março de 2020. O artigo pode ser conferido, na íntegra, no sítio: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-03/coroa-de-espinhos-jesus-especialista-brasileiro-pesquisa.html)

(3) Moraes, Pe. Micael de. Os Números na Bíblia. São Paulo: Palavra e Prece, 2012, p. 119. 
(4) Edersheim, Alfred. The Life and Times of Jesus the Messiah. Vol. II. Londres: Longmans, Green & Company,1886, p.611.

(5) Varazze, Jacopo de. Legenda Áurea – Vidas de santos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003, p. 296.

(6) Segundo São João Crisóstomo: “O soldado, traspassando-lhe o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo, e eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas extraordinárias” (Evaristo, Carlos & Farah, Fábio. Relíquias Sagradas – Dos tempos bíblicos à era digital. São Paulo: Paulus, 2020, p. 278)

(7) Orações compostas pelo autor do artigo com aprovação eclesiástica de Dom Odilo Pedro Scherer, cardeal e arcebispo de São Paulo, concedida em março de 2024. 

(*) Fábio Tucci Farah é perito em relíquias sagradas da Arquidiocese de São Paulo, delegado brasileiro da International Crusade for Holy Relics (ICHR) e curador adjunto da Regalis Lipsanotheca, em Ourém.

Imagens:  Sérgio Prata 

Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui

27 março 2024, 16:18