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Mosteiro Tatev na região de Goris, a 316 km de Yerevan, sudeste da Armênia, construído no século X. (©mantvydasd - stock.adobe.com) Mosteiro Tatev na região de Goris, a 316 km de Yerevan, sudeste da Armênia, construído no século X. (©mantvydasd - stock.adobe.com)  (©mantvydasd - stock.adobe.com)

Jean-Pierre Mahé: cristianismo armênio, memória oriental da Igreja

A Armênia foi o primeiro reino a adotar o cristianismo como religião oficial. O seu patrimônio religioso, espiritual e arquitetônico de dois mil anos testemunha a importância de manter viva e enraizada a presença cristã no Cáucaso.

Delphine Allaire - Cidade do Vaticano

“As igrejas e mosteiros de Nagorno-Karabakh devem ser respeitados e protegidos.” O Papa Francisco lançou este apelo no domingo, 15 de outubro, depois do Angelus, expressando a sua preocupação pela situação humanitária dos deslocados. O enclave armênio viu a fuga de 100.000 dos seus habitantes desde a agressão militar de Baku lançada há um mês, em 19 de Setembro.

A herança religiosa cristã de dois mil anos desta terra, o berço espiritual da Armênia, está agora nas mãos dos azerbaijanos. Segundo dados do Defensor dos Direitos Armênios, quase 1.500 monumentos armênios já tinham ficado sob o controlo do Azerbaijão após a guerra de 2020. Entre eles, 161 mosteiros e igrejas. O desafio de manter a presença cristã e preservar a sua herança religiosa remonta aos primeiros séculos.

Terra da Arca de Noé, a Armênia adotou o cristianismo como religião oficial alguns anos antes de Roma. O orientalista francês Jean-Pierre Mahé, especialista em cristianismo armênio e diretor de estudos da École Pratique des Hautes Études, traça no tempo as origens e particularidades desta Igreja mártir.

Como o cristianismo chegou e se difundiu na Armênia e como esteve desde o início intimamente ligado à unidade do país?

A cristianização foi inicialmente não oficial, simplesmente provocada por intercâmbios comerciais, intelectuais e religiosos entre a Síria e a Armênia. Segundo a Tradição, Tadeu teria sido o primeiro apóstolo da Armênia e teria ido até Abgar, o rei de Edessa. Diz-se que ele converteu todo o reino de Abgar, cuja metade sul era siríaca. A metade norte era armênia. O soberano não a declarou uma religião obrigatória. Foi uma conversão pessoal da sua parte. Muitos de seus súditos o imitaram. A linguagem religiosa armênia empresta termos essenciais do siríaco. Por exemplo, sexta e sábado são muito importantes, porque o primeiro efeito da conversão ao cristianismo é estruturar a semana. Estamos saindo de um regime de calendário onde o tempo é dividido em meses lunares para entrar num tempo mais litúrgico, onde todas as semanas são marcadas pela preparação do sábado, urbat, na sexta-feira, depois o Shabat no sábado, e depois o domingo, primeiro dia da semana seguinte, Dia da Ressurreição.

 

As comunidades cristãs foram, portanto, estabelecidas no sul da Armênia na era apostólica, a partir do final do século I e provavelmente no início do século II. A Armênia do Norte permaneceu pagã, convertida não pelo Sul, mas pelo Ocidente. Graças ao apostolado de São Paulo, o cristianismo difundiu-se na Ásia Menor e, a partir da Capadócia, difundiu-se também na Armênia no início do século IV, na época do rei Tirídates, estabelecido no trono pelo imperador romano Diocleciano.

No início, Tirídates era um pagão militante e por isso matou religiosas que se refugiaram do Império Romano na Armênia. A Tradição diz que após os crimes ele teria sido transformado em porco selvagem. Neste momento, um cristão que ele havia prendido anteriormente, São Gregório, o Iluminador, foi libertado da prisão, convertendo-o entãi ao cristianismo nos primeiros dez anos do século IV.

Em que aspectos esta difusão do cristianismo na Armênia difere daquela em Nagorno-Karabakh?

Nagorno-Karabakh pertence a uma região montanhosa isolada ligada ao cristianismo de outras maneiras. Um homem santo, Yeghishe ou Eliseu, era segundo os textos mais antigos um dos discípulos de Tiago, o Justo. Ele foi para o norte do atual Azerbaijão, para a margem esquerda do rio Kura, onde fundou a mais antiga, mãe de todas as igrejas do Cáucaso.

Posteriormente, o cristianismo se espalhou pelo resto do país, mas o cristianismo de Nagorno-Karabakh se deve principalmente à ação de um governante Vatchagan, o Piedoso, que subiu ao trono em 484. Vatchagan, o Piedoso, construiu uma nova cidade. Ele purificou os lugares ocupados pelos ídolos pagãos espalhando as relíquias dos santos, e devemos-lhe em particular a construção do monumento religioso mais antigo de Karabakh e do Azerbaijão, que é o mausoléu de Grigoris, filho pequeno de São Gregório, o Iluminador e Catholicos da Albânia Caucasiana. Este monumento está hoje em Amaras. Há também abaixo de Karabakh, no corredor de Lachin, uma igreja muito antiga chamada O mosteiro de Hirondelle e cujas partes mais antigas hoje preservadas datam do século IV.

 

Como é que esta Igreja Apostólica Armênia progrediu? Qual é o estado das suas relações com outras Igrejas cristãs, nomeadamente Roma, durante o período conhecido como a Igreja dos Três Concílios?

Roma está muito longe da Armênia. Por razões geográficas, e não dogmáticas, a relação importante era, portanto, com Jerusalém. A partir de 324, o sucessor de São Gregório, o Iluminador, seu filho que se chamava Aristakes, participou do Concílio de Nicéia e foi um dos signatários do Concílio de Nicéia. Depois, o sucessor de Aristakes, Vertanès, também filho de São Gregório, o Iluminador, correspondeu-se com o patriarca Macário de Jerusalém. Ele havia sido convidado pelo Patriarca Macário para a inauguração da Igreja de Anástase, o Santo Sepulcro. Não pôde ir até lá, mas os enviados em seu lugar compareceram ao batismo dos catecúmenos para a Páscoa, questionando o Patriarca Macário sobre como administrar o batismo. Isto marcou o início de uma relação muito profunda entre os Armênios e a Igreja Mãe de Jerusalém. Foi aqui que adotaram os seus hábitos e o seu calendário litúrgico. Uma das originalidades do calendário litúrgico armênio é a celebração simultânea, no dia 6 de janeiro, da festa da Natividade, dos Três Reis Magos e do batismo de Cristo, como se os Três Reis Magos tivessem chegado justamente no momento em que o Cristo nasceu. E como se, 30 anos depois, exatamente no mesmo dia e no mesmo momento, Cristo tivesse recebido o batismo no Jordão. É um rito muito antigo de Jerusalém, posteriormente modificado no século IV, para que possamos distinguir claramente a natureza humana da natureza divina de Cristo, mas que os arménios nunca aboliram.

As relações com Roma são posteriores e datam da época das Cruzadas, do início do século XI, ainda que certas correspondências atestem ligações já desde Carlos Magno. Durante as Cruzadas, os francos não hesitaram em receber os sacramentos dos padres armênios, nem em casar com mulheres armênias. Naquela época havia uma familiaridade muito grande, uma fraternidade muito grande entre os francos e os latinos.

As relações se deterioraram por volta do século XIII, quando os latinos tomaram conhecimento da abordagem heresiológica dos gregos em relação aos armênios. Os gregos condenaram os armênios como hereges e cismáticos. Os latinos examinaram mais de perto e começaram a listar os erros dos armênios e começaram a tentar convertê-los à liturgia romana e a forçar uma união com Roma.

 

Ao longo desta história e de sucessivas dominações, que tipo de perseguição têm sofrido os cristãos armênios? De quem vieram e com que consequências?

As perseguições foram inicialmente zoroastrianas. Quando a Armênia se tornou cristã, no início do século IV, uma nova monarquia persa foi estabelecida no Irã, enquanto a monarquia anterior era uma monarquia parta, amiga dos armênios.

Pelo contrário, os persas alegaram restaurar completamente a religião de Zoroastro, demolir “todos os ídolos” e estabelecer o culto ao fogo sagrado. Inicialmente houve perseguição latente, depois em 449 apareceu um decreto de conversão compulsória para todos os armênios sob pena de morte. Naquela época, os armênios se revoltaram e enfrentaram com muita coragem a ameaça dos persas, maiores em número e modernidade de armamento. Foram, portanto, todos mortos numa batalha em 451. Mas depois da derrota, não quiseram abjurar e, portanto, até ao fim do Império Persa, até meados do século VII - o Império Persa foi derrotado pelos árabes em 653 -, houve retornos periódicos da perseguição zoroastriana na Armênia.

Depois disso, houve o mal-entendido da disputa com os bizantinos. Os bizantinos acusaram os armênios de serem monofisitas, isto é, de negarem a natureza humana de Jesus Cristo. Com efeito, na Igreja Armênia, Jesus tem uma natureza que é eterna, que é a natureza da Palavra de Deus, e tem uma humanidade que é uma indulgência de Deus, uma economia de Deus. Isto quer dizer que pela graça, o Verbo eterno tornou-se homem, mas a sua humanidade é completamente real, isto é, que Jesus é totalmente homem e totalmente Deus de acordo com a doutrina arménia. Mas os bizantinos não ouviram isso e perseguiram os armênios a partir do século X.

 

Depois, os armênios acolheram o califado árabe, pensando em assinar um acordo de tolerância, prestando homenagem e a continuação do culto sem perseguições. Foi o que aconteceu enquanto os árabes temiam as tribos do Cáucaso.

Mas a partir do século VIII eles conquistaram a Ásia Central, portanto os armênios não lhes serviam mais do ponto de vista estratégico e começaram a persegui-los. O século VIII, portanto, testemunha as perseguições muçulmanas contra os armênios antes de outras invasões. Como os turcos e os mongóis não eram muçulmanos desde o início, os armênios tentaram sobreviver apesar das crueldades, mas quando estas pessoas se tornaram islâmicas, houve muitos, muitos mártires arménios do Islão.

O século XIX foi o grande período de decomposição do Império Otomano, durante o qual os armênios foram vistos como uma ameaça pelos defensores do Império e apareceram os primeiros projetos de destruição em massa, massacres e eliminação total dos Armênios.

À luz desta história turbulenta, como caracterizar a fé dos armênios? Tem ela esta famosa resistência espiritual específica dos povos perseguidos, muitas vezes aninhados na encruzilhada dos impérios?

O cristianismo não é praticado da mesma forma no Oriente e no Ocidente, e em particular na Armênia. A liturgia tem precedência, é toda a religião, vivida como antecipação dos fins últimos. Uma verdadeira liturgia armênia dura 3 horas no domingo: a primeira hora como período de penitência, depois a própria liturgia começa com a procissão da Cruz, e depois vem a liturgia diante dos anjos. Na liturgia armênia, eles são representados por diáconos que seguram sistros seráficos representando o som das asas dos serafins. A liturgia não acontece apenas no altar, mas também no altar celestial, o templo celestial descrito por Isaías e Ezequiel. Este é o ponto mais importante da liturgia. E assim a resiliência dos armênios é muito forte. Ela tinha um apego inabalável ao cristianismo e uma coragem extraordinária diante do martírio.

Por que então a sobrevivência do cristianismo armênio representa uma questão vital e existencial para o mundo inteiro?

O capítulo dedicado às Igrejas Orientais do Concílio Vaticano II, escrito pelos Padres Conciliares, afirma que existem tesouros das origens do cristianismo preservados pelas Igrejas do Oriente, tanto as ligadas a Roma como as independentes. Existem várias maneiras de expor os mistérios.

Esta é a razão pela qual o Papa Francisco declarou Doutor da Igreja universal em 2015 o grande poeta místico e teólogo arménio São Gregório de Narek, poeta do ano 1000 que enuncia o dogma cristão com uma ortodoxia perfeita, mas ao mesmo tempo com uma certa independência em relação às formulações do Ocidente.

Para a preservação da memória do pensamento cristão, isto é muito importante. E deve notar-se que a Arménia e a Geórgia constituem ilhas do Cristianismo num oceano do Islão. Os cristãos arménios e de Nagorno-Karabakh são testemunhas desta memória.

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21 outubro 2023, 13:22