Ressignificando a vida consagrada pela vivência de uma espiritualidade sinodal
Por Ir. Veridiana Kiss, ASCJ
Ao longo dos anos a vida consagrada religiosa vem passando por diversos desafios. Bem se sabe, que a sociedade moderna vive em constantes transformações, o Sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman o definiu como conceito de “modernidade líquida”, no qual além das constantes mudanças, é perceptível a fragilidade nas relações humanas, tocando o cerne da vida religiosa “No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência.” (modernidade líquida: sobre a fragilidade dos laços humanos).
A passagem de uma vida em comum a uma comunhão de vida implica uma abertura total a um processo de conversão sensível no reconhecimento da própria humanidade que, se bem apropriadas como compromisso de vida, poderão irradiar transformações estruturais profundas que contribuirão à corresponsabilidade de todos(as), na edificação de uma comunidade profética e saudável, através do envolvimento efetivo e afetivo de seus membros em um percurso comum.
O termo “ressignificar” significa “atribuir um novo significado a”, “dar um sentido diferente a algo”. Esta dimensão nos coloca em uma espiritualidade de peregrinação, êxodo e saída de nós mesmos(as). Podemos dizer, que, quando é tocada a questão do desinstalar-se e do sair do conforto[1], a natureza humana grita e a insegurança se instala. Por este motivo Papa Francisco nos incentiva a superar nossos medos diante das possibilidades de renovação, “Como Jesus ‘chacoalhava’ os doutores da lei para que saíssem da inércia, agora também a Igreja é ‘chacoalhada’ pelo Espírito para que deixe sua zona de conforto e seus apegos. A renovação não nos deve causar medo”.
O convite feito aqui, seria o de qualificar nossas relações comunitárias em uma experiência de comunhão, nascidas de uma vocação divina para ser um sinal vivo da primazia do amor de Deus, que opera suas maravilhas entre nós. Conforme Manenti (1991), a maturidade relacional é a capacidade de viver a relação com os outros, num estilo que seja prevalentemente de totalidade e de transcendência teocêntrica, seja da parte de quem se doa como da parte de quem recebe este dom[2]. Pensando deste modo, toda pessoa consagrada é chamada a refletir a beleza de Deus, apesar da sua fragilidade. É por natureza predisposta a construir um relacionamento e a capacidade de readaptar sua maneira de se relacionar com os outros na comunidade. É claro que, se é verdade que neste âmbito de conscientização não faltam dificuldades, também devemos ter em mente que, estar com os outros aumenta continuamente a capacidade de conviver, participando da construção de uma plataforma relacional autêntica, mesmo em situações ou problemas da comunidade[3].
Certas situações que também são desconfortáveis no relacionamento com o outro não impedem o processo de crescimento, mas são um impulso que os liga a um autoconhecimento mais preciso. Aqueles que seguem o caminho de um conhecimento mais profundo de si mesmos certamente também melhoram a qualidade de relação com o outro, passando a viver de uma alteridade intrapsíquica à uma alteridade interpessoal, ou seja, estão mais dispostos a ouvir, percebem melhor a diferença, são menos superficiais e banais, provavelmente mais sensíveis e atentos à beleza, mais capazes de contemplar a verdade, na certeza em cumprir seu dever no caminho de crescimento pessoal e comunitário[4].
O Documento Vida Fraterna em comunidade, propõe a “triplicidade” de relações quando estimula à vivência da vida comunitária como dom, como lugar de fraternização, como lugar e sujeito da missão, expondo-nos os caminhos adequados e concretos para um processo de discernimento e revitalização do viver em comum, isto é, a relação consigo, com os outros e com o apostolado, sabendo que todas elas nascem da relação íntima com o Senhor. Neste sentido, não poderíamos ter a pretensão de pensar sermos construtores únicos(as), mais vantajosos(as) e fundamentais, mas, conscientes das nossas vulnerabilidades relacionais e não obstante a elas, a Igreja como Mãe amorosa, nos convida a abrirmo-nos às novidades do Espírito que nos conduz por vias originais neste momento atual. Sabendo que “antes de ser uma construção humana, a comunidade religiosa é um dom do Espírito.” (VFC, 8)
Vale ressaltar, os apelos do Papa Francisco por uma vida consagrada mais profética na esperança durante o Ano da vida Consagrada. Ele, encorajou os Consagrados a DESPERTAREM O MUNDO, através da alegria, “o encontro com Jesus ascende em nós a beleza originaria, a beleza do rosto no qual resplandece a gloria do Pai (cf. 2 Cor 4,6), no fruto da alegria”. (Alegrai-vos 1, pag. 7), e elencou três objetivos para serem vivenciados durante aquele ano no concreto das comunidades religiosas, como uma dinâmica temporal em nossa história vocacional: “olhar o passado com gratidão”, não se esquecendo das raízes fundantes, chamou os consagrados(as) a “viver o presente com paixão” impelindo-os a reproduzir no concreto atitudes renovadas de gestos sensíveis ao dom recebido e a “abraçar o futuro com esperança”, tendo a certeza que ampliando os horizontes diante dos desafios congregacionais como envelhecimento, falta de vocações, a fragilidade da vida emocional e a saúde mental dos membros, seria possível encontrar “pistas” de renovação e oportunidades de revitalização na história carismática de cada instituição.
Atrevo-me a propor nestas poucas linhas, “vias” de ajuda para concretizar uma vivência válida da consagração, tais como: seguimento autêntico do Senhor, um processo de formação permanente profícuo e o cuidado empático e sensível na vida comunitária.
O Seguimento autêntico do Senhor
Podemos dizer que a vida se revela em nossas experiências pessoais e relacionais, afinal de contas, ninguém nasce para ser uma ‘ilha’. O sentido relacional perpassa à linha do nosso tempo histórico. Desde o nosso nascimento estamos e vivemos em continua relação com tudo ao nosso redor. Sou persuadida que um encontro íntimo e verdadeiro com o Senhor[5] transforma a vida, converte as percepções errôneas e transfigura a essência. Imoda (2005), co-fundador do Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Gregoriana - Roma, fala da necessidade de passar pelo processo da alteridade nas relações interpessoais, onde é possível o conhecimento mútuo, e isso também se dá no encontro com o Sagrado “o ser humano não só se enriquece, mas se realiza quando saí da realidade supostamente conhecida e se abre ao mundo de uma alteridade sempre mais transcendente.”
Processo de formação permanente profícuo
Tocar na palavra “formação”, nos remete a uma linha do tempo por que está simultaneamente conectado com o nosso processo existencial, afinal, a formação permanente dura toda uma vida, como afirma Cencini (2003). Se "na mentalidade tradicional, a formação serviu para adquirir conhecimentos suficientes para trabalhar toda a vida sem a necessidade de uma formação adicional [...] hoje há necessidade de aprendizagem ao longo de toda a vida".[6]
Quantos(as) de nós já não vivenciamos a experiência de acompanhar o processo de uma fruta em amadurecimento, de uma planta em desenvolvimento e/ou uma criança sendo gerada, isso não acontece da noite para o dia, bem como, não acontece em um passo mágico de decisão, mas requer dedicação e cuidado. Quando falamos de processo e quando esta toca a centralidade da pessoa humana que vive e se revela em seus mistérios, percebemos que também no processo formativo a questão do tempo é essencial, quando não, muitas vezes, prioritário. Portanto, o aspecto mais importante da aprendizagem ao longo da vida está na mentalidade, na prontidão para aprender a reaprender e na docilidade[7]. Reconhecemos desta maneira que a vida consagrada tem a necessidade de empreender um percurso que seja menos informativo e mais formativo, para que que possa viver uma formação permanente e não uma frustração permanente, conforme nos lembra Cencini em suas conferências sobre a formação continuada. Somente desta forma poderemos ser no mundo um sinal profético, luminoso e fecundo.
Cuidado empático e sensível na vida comunitária
Neste último ponto apresento-lhes, talvez a resposta para uma vida consagrada com três “F”s: mais fraterna, fecunda e feliz. Certamente, tudo encontraria mais sentido se em nossas relações comunitárias houvesse mais empatia e cuidado. O interessar-se, a sensibilidade e o colocar-se no lugar do outro(a) ainda “não caíram de moda”, ainda mais na vida de dedicação a qual escolhemos sendo chamados(as) a liberdade no amor “O amor de Cristo, difundido em nossos corações, impele a amar os irmãos e as irmãs até o assumir suas fraquezas, seus problemas, suas dificuldades. Numa palavra: até a doar-nos a nós mesmos”. (VFC, 21) Como seria saudável se as nossas relações fraternas fossem pautadas pela liberdade no amor, na ternura e no cuidado mútuo, tudo teria mais sentido e certamente viveríamos experiências profundamente significativas de perdão e da realização pessoal.
Aprendendo a sinodalidade comunitária, construindo relações mais fraternas
A Igreja através do Papa Francisco vem incentivando a vida consagrada religiosa a um percurso sinodal de ressignificação do passado, vivendo um presente pleno de sentido com perspectivas de um futuro profético e evangélico.
Viver a sinodalidade em um percurso comunitário nos faz entrar em uma dinâmica de escuta: escuta da Palavra, escuta dos sinais dos tempos, escuta dos outros, escuta do Espírito Santo, para discernir a vontade de Deus neste momento histórico da Igreja. Significa caminhar pela mesma estrada, juntos(as) na mesma direção como Jesus, no encontro com o jovem rico, com Mateus, com o cego Bartimeu, com a Samaritana, com os discípulos de Emaús, significa entrar em relação, ouvir, discernir e curar. Que a partir destes elementos possamos viver uma vida consagrada religiosa renovada, com maior qualidade, deixando-nos conduzir pelas novidades do Espírito, para assim, ressignificando o mistério da nossa opção por Cristo e da escolha que Ele fez de nós, sermos uma vida consagrada samaritana que é convidada a curar e enfaixar as feridas da humanidade.
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Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CENCINI, A. Os sentimentos do Filho. Caminho Formativo na vida consagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 2002.
CENCINI, A. L'albero della vita. Verso un modello di vita di formazione iniziale e permanente, Ed. San Paolo, 2011.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. A Vida Fraterna em Comunidade. “Congregavit nos in unum Christi amor”, Ed. Paulinas, São Paulo, 1994.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos. Carta Circular aos consagrados e consagradas do Magistério do Papa Francisco, Roma 2 de fevereiro de 2014.
G. CREA, I. Conflitti interpersonali nelle comunità e nei gruppi, Ed. Dehoniane, Bologna 2001.
IMODA. F. Sviluppo umano, psicologia e mistero, EDB, Bologna 2005.
MANENTI, A. Vivere insieme. Aspetti psicologici, EDB, Bologna 1991.
Ir. Veridiana Kiss, Apóstola do Sagrado Coração de Jesus, doutoranda em Psicologia (Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma/Itália). E-mail: kveridiana@gmail.com
[1] Cfr. https://veja.abril.com.br/mundo/na-colombia-papa-pede-a-igreja-para-sair-da-zona-de-conforto/
[2] Cfr. A. MANENTI, Vivere insieme. Aspetti psicologici, Op. Cit, p. 90.
[3] Cfr. G. CREA, I conflitti interpersonali nelle comunità e nei gruppi, Ed. Dehoniane, Bologna 2001, p. 15.
[4] Cfr. A. CENCINI, L’albero della vita, Op. Cit, p. 255.
[5] "O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor [...] As outras realidades deste mundo são criadas para o homem e para ajudá-lo a alcançar o fim para o qual ele foi criado.” IGNAZIO DI LOYOLA, Esercizi spirituali, 23.
[6] 18 M. GAHUNGU, Formazione iniziale e permanente dei presbiteri e dei religiosi, dispense lezione del 19/11/2020, 6.
[7] A. CENCINI, Os sentimentos do filho, 162.
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