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A religiosa na Casa-família para os doentes de Aids, nos Anos 80 A religiosa na Casa-família para os doentes de Aids, nos Anos 80  #SistersProject

Irmã Gianna pelos doentes de Aids nos Anos 80: com amor contra o preconceito

"Nós, pessoas 'saudáveis', tão habituadas a aparecer, aprendemos a tirar uns aos outros as máscaras, a fim de restituir a nossa vida à verdade do ser", afirma a Ir. Gianna Raumer ao recordar o atendimento aos doentes de Aids na Villa Glori, na capital italiana, feito por voluntários.

Gianna Raumer*

A realidade da casa-família para doentes de Sida (a fase mais avançada da infecção por HIV) nasceu exatamente a 5 de dezembro de 1988 em Roma, no bairro Parioli, dentro do parque de villa Glori; foi a primeira na Itália e provocou um tumulto de manifestações “contra”, com debates muito acirrados nas assembleias municipais, com queixas ao Tribunal administrativo regional do Lácio. O impacto com uma doença como a Sida, num período em que não havia curas bem definidas e as pessoas doentes eram marginalizadas porque consideradas pesteadas, gerava muito medo e angústia.

Os primeiros jovens vinham de fora de Roma (Roberto, do Hospital Cardarelli em Nápoles; Ciro, da Apúlia), ou da rua, ou de hospitais romanos onde estavam internados por vários meses, até durante um ano, porque quando tiveram alta não havia ninguém que os recebesse.

Os testemunhos vivos na memória

Não posso esquecer a chegada de Sherry com a ambulância às 7h00 da manhã ou de Vincenzo, o mendigo sábio, às 22h00, no escuro para escapar da intromissão de jornalistas, do assalto de fotógrafos ou da ameaça de tomates na cara de algum “pariolino”. Houve até o salto do portão da parte de um conhecido político! Manifestações e demonstrações “contra”, mas também procissões e marchas de oração a favor!

Foi comovedora a solidariedade das paróquias vizinhas, da Piazza Euclide e San Roberto Bellarmino, mas também de algumas escolas próximas que enviaram mensagens e, além disso, lojas, restaurantes que nos enviaram vários pratos, e muitos amigos desconhecidos que se uniram num abraço caloroso oferecendo ajudas de todos os tipos.

No início havia muitos voluntários, de todas as camadas sociais e crenças religiosas. Programavam-se encontros de formação e definiam-se as várias tarefas: cozinha, acompanhamento das pessoas ao hospital para consultas, visitas de companhia e amizade, saídas e mais tarde a redação do jornalzinho “Dark Side”. As festas celebradas naquela colina são inesquecíveis: ofícios religiosos, festas de aniversário, de carnaval, de primavera ou de verão. Havia sempre razões para celebrar porque a vida é bela e valia a pena vivê-la intensamente até ao último instante.

Com o passar do tempo, o número de voluntários diminuiu mas permaneceram aqueles que se sentiam mais motivados e eram mais treinados para a “gratuidade”, também porque nos primeiros anos o contacto com a morte e a “perda” de pessoas era muito frequente (até 10 num ano); eram acompanhados até à morte, fazíamos turnos e o sofrimento da separação era deveras dilacerante.

O retorno ao contato familiar

Um dos primeiros objetivos da Casa foi restabelecer os contactos com as famílias de origem, interrompidos durante anos para alguns, devido a escolhas de vida consideradas “transgressivas”. Na grande maioria dos casos, a relação foi restabelecida e isto favoreceu uma vida serena até à morte.

Recordo em particular um hóspede que recuperou o contacto com a ex-esposa e as quatro filhas e teve a alegria de acompanhar a mais nova à escola no início do ano letivo.

O pedido de participar na gestão da Casa foi feito à nossa família religiosa por monsenhor Luigi di Liegro (então diretor da Cáritas diocesana de Roma) que casualmente tinha encontrado uma das nossas religiosas que naquela época acompanhava as noviças, uma vez por semana, ao refeitório de Colle Oppio, onde se forneciam refeições a muitas pessoas indigentes. Três de nós foram escolhidas (eu, que então servia em Veneza na prisão feminina da “Giudecca”, uma irmã enfermeira da Toscana e uma terceira irmã que estava em Roma na Usmi para o trabalho pastoral vocacional). Ao nosso pequeno grupo uniram-se em pouco tempo duas irmãs mais jovens, estudantes nas Faculdades pontifícias. Trabalhar com monsenhor Di Liegro foi uma grande graça. Era muito humilde e fraterno connosco: eis a sua caraterística humana. Frequentemente durante as refeições partilhava dificuldades e incompreensões, e ao mesmo tempo era muito corajoso e exigente com os responsáveis das instituições públicas, quando se tratava de defender os direitos dos mais pobres e marginalizados. Um verdadeiro homem de Deus e profeta do nosso tempo!

Aprender a tirar as máscaras

Para a minha comunidade religiosa foi uma oportunidade concreta de pôr em prática o carisma confiado às nossas santas Bartolomea Capitanio e Vincenza Gerosa, nascidas em Lovere, Bérgamo. Cada reunião, cada relação nova era um importante encontro com Deus que nos revelava algo de si, do seu projeto de amor, da sua beleza, do seu drama dor-ternura. Da partilha diária da vida com as pessoas que acolhemos, aprendemos que cada momento é importante e como tal deve ser vivido intensamente, que nada é banal... cada acontecimento feliz ou triste deve ser vivido na essencialidade, na verdade, sem máscaras. Nós, pessoas “saudáveis”, tão habituadas a aparecer, aprendemos a tirar uns aos outros as máscaras, a fim de restituir a nossa vida à verdade do ser. Lentamente, a comunidade das irmãs tornou-se uma família alargada, em cujo círculo entraram todos aqueles que estavam à nossa volta e viviam connosco: doentes de Sida, enfermeiros, prestadores de cuidados (incluindo alguns prisioneiros em regime de semiliberdade), voluntários, amigos de todas as idades, classes sociais, afiliações religiosas ou políticas. A complexidade dos problemas levou-nos a pensar e a trabalhar juntos, a confrontar-nos continuamente, a verificar orientações, desejos, dúvidas e esperanças...

Aprendemos o que significa cuidar dos outros, todos os dias, até ao último momento da vida, através das coisas mais simples: cuidar da pessoa, limpar a casa, cozinhar, passar a ferro, cuidar do corpo e curar a alma ferida. Não só profissionalismo e competência, mas sobretudo uma relação afetiva, profunda e envolvente.

Devo dizer obrigado a todos aqueles que viveram esta aventura humana comigo, e agradeço especialmente a monsenhor Luigi Di Liegro, verdadeiro irmão e amigo no Senhor, instrumento corajoso nas mãos de Deus que tornou possível esta experiência inesquecível de “Igreja pobre que está com os pobres”. Como seria feliz o Papa Francisco, se tivesse encontrado o padre Luigi, e quanta alegria e consolação teria recebido o padre Luigi deste Magistério. Certamente hoje recebe a recompensa do Alto, na Luz envolvente do Pai.

*testemunho recolhido por Valentina Angelucci

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19 julho 2022, 08:00