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O supérfluo e a partilha das coisas em vista da vida eterna

Neste mundo as coisas evoluem de uma forma rápida. Uma roupa que tem valor hoje, será desconsiderada amanhã, havendo outra de maior valor. No entanto a prática da caridade permanece para sempre (1 Cor 13,8).

Dom Vital Corbellini, Bispo de Marabá – PA.

A Doutrina Social da Igreja possui uma palavra muito importante a respeito do supérfluo no sentido de que é preciso repartir o excedente para com os pobres e necessitados. O supérfluo refere-se às coisas que as pessoas possuem a mais, de modo que adquirirá um valor eterno, quando elas ajudam os pobres, porque apontam para a eternidade. Neste mundo as coisas evoluem de uma forma rápida. Uma roupa que tem valor hoje, será desconsiderada amanhã, havendo outra de maior valor. No entanto a prática da caridade permanece para sempre (1 Cor 13,8).

A palavra supérfluo vem do latim superfluus, cujo significado refere-se a tudo aquilo que transborda, excede, que é a mais, não é necessário, nem indispensável[1]. O que se poderia fazer com tantas coisas supérfluas nas quais as pessoas não fazem mais uso ou pouco de suas coisas?! Veremos a seguir esta doutrina nos padres da Igreja a respeito do supérfluo, os seus pensamentos que nos ajudam na caminhada de fé, de esperança e de caridade.

Herança da Patrologia, Patrística

A doutrina do supérfluo é uma das grandes heranças que a tradição da Patrologia e da Patrística deixou para todas as pessoas, uma forte especificação da mensagem evangélica de Jesus Cristo e do Novo Testamento. Esta é sempre lembrada, constituindo-se um dos imperativos do momento. Num tempo do consumismo muito forte, uma volta às à Tradição dos primeiros séculos do cristianismo, parece mais que necessário. O supérfluo é objeto primário da partilha em relação à caridade[2].

É supérfluo o que supera a necessidade

São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla, séculos IV e V afirmou que aquilo que supera a necessidade é supérfluo e inútil. Se a pessoa caminha com um sapato maior do que o pé de modo que a pessoa não a suportará porque impede a pessoa de caminhar. O bispo disse que se a pessoa desejar construir uma casa, não só com a intenção de dedicá-la sobre a terra, mas é fundamental edificar habitações no céu, para assim acolher também outras pessoas, habitações que nunca faltarão a ninguém[3].

A vivência de uma forma normal

Ainda São João Crisóstomo afirmou que é supérfluo tudo aquilo que está além do que é necessário. Desta forma o bispo insistia junto aos seus fiéis que quando a pessoa vive de uma forma saudável e honesta sem algo a mais esta vai ser colocada entre as coisas supérfluas. Nas coisas cotidianas como à roupa, à comida e à cama, procura-se somente o necessário, pois aquilo que é supérfluo é inútil[4].

Não se pode perder o necessário

São João Crisóstomo disse também que a preocupação da pessoa em acumular coisas naquilo que ultrapassa as necessidades humanas, corre-se o perigo de perder também o necessário. É claro que a coisa mais necessária é a salvação, que São João tanto frisou pela superação do seu egoísmo, e não negando aos necessitados quanto a eles sobra[5].

Dar aos pobres

Santo Agostinho, bispo de Hipona, séculos IV e V afirmou que os ricos usem do próprio supérfluo para dar o necessário aos pobres. Quando a pessoa tem algo para comer e vestir-se já é suficiente para ser uma pessoa contente e feliz. A pessoa não poderia ter mais daquilo que é essencial, pois todos os outros bens que vão além são supérfluos, pois o que a pessoa tem como supérfluo, é o necessário para o pobre[6].

O supérfluo em vista da caridade

Santo Agostinho dizia também que a caridade é dada em vista do supérfluo, porque realiza a palavra de Jesus de que ninguém tem maior amor do que dar vida pelos seus amigos (Jo 15,13). O bispo disse que é possível dar ao irmão um pouco dos bens que a pessoa possui. A caridade brota no coração com a abundância da misericórdia. Desta forma é possível dar o supérfluo ao irmão, como forma de unidade ao amor total que é dar a vida pelos amigos, assim como fez Jesus Cristo com toda a humanidade. O supérfluo faz ver a necessidade da misericórdia para com a pessoa que não tem nada para ajudá-la. O amor segue referência não pelas palavras mas ao fato, à realidade como São João fala, com as obras e com a verdade (1 Jo 3,18)[7].

Enxugar os pés de Jesus

Santo Agostinho teve presentes ainda que a doutrina do supérfluo, pela doação das coisas para as pessoas necessitadas, vem do seguimento a Jesus Cristo. Ele disse que não era supérfluo a unção de Maria aos pés do Senhor e que ela enxugou os pés dele com os seus cabelos, mas aquilo era doação do melhor perfume ao corpo de Jesus em vista de sua sepultura. Se a pessoa tem algumas coisas supérfluas, será bom fazer a partilha com os pobres e assim a pessoa enxugará os pés de Jesus, porque os cabelos parecem ser o supérfluo do nosso corpo. Desta forma a pessoa tem como empregar os bens supérfluos que são importantes aos pés de Jesus[8]

As coisas que avançam são dos outros

São Basílio de Cesaréia, bispo, século IV afirmou que as coisas a mais das pessoas são dos outros. O pão que a pessoa retém pertence ao faminto, o manto que a pessoa guarda no armário é de quem está nu; os sapatos que apodrecem na casa da gente, pertencem ao descalço; o dinheiro que a pessoa tem enterrado é do necessitado. O fato é que a pessoa faz muita injustiça e em muito poderia socorrer os outros, os pobres e não é feito para o seguidor e seguidora de Jesus Cristo[9].

A criação foi dada para todas as pessoas

São Gregório de Nazianzo, bispo de Constantinopla, século IV disse que Deus criou as coisas para todas as pessoas. Deste ponto deriva a necessidade do supérfluo. Ele afirmou a importância da imitação com Deus, porque ele fez as coisas para todas as pessoas, a terra, as fontes, os rios, os bosques. Aos pássaros deu o ar; a água aos necessitados para beber e a todos deu os elementos necessários para a vida. O Senhor colocou a igualdade do dom, a igualdade da natureza e mostrando junto a riqueza da sua bondade. Mas quando os seres humanos começaram a acumular as coisas, o ouro, as roupas esplêndidas, pedras preciosas, as quais também foram motivos de guerras, houve o fechamento dos corações a quem era mais necessitado, e as pessoas que possuíam mais não queriam ir ao encontro às necessidades dos outros, nem até com o seu supérfluo[10]. É preciso voltar à originalidade das coisas na forma como Deus criou para que todos usufruam dos bens de todos, superando o egoísmo e a falta de fraternidade.

Partilhar com aqueles que não tem nada

São Jerônimo, padre da Igreja, séculos IV e V, teve presentes a partilha das coisas com as pessoas que nada possuem. Se a pessoa recebeu mais daquilo que necessita pela roupa, e alimento, será fundamental distribuir àqueles que não possuem nada[11].

A doutrina do supérfluo é bem ligada ao evangelho de Jesus Cristo, pois ela reforça a todos os seguidores do Senhor, a partilha, a distribuição para com as pessoas necessitadas. Os padres da Igreja colocam muito bem esta doutrina em vista do seguimento de Jesus para que este seja frutuoso e assim a pessoa busca a prática da caridade, através do supérfluo.  

[1] Cfr. Supèrfluo. In: Il vocabolario treccani, Il Conciso. Milano, Trento, 1998, pg. 1726.

[2] Cfr. Giordano Frosini. Il Pensiero Sociale dei Padri. Brescia, Queriniana, 1996, pg. 80.

[3] Cfr. San Giovanni Crisostomo. PG 49,41. In: Giordano Frosini. Il Pensiero Sociale dei Padri, pg 80.

[4] Cfr. Idem.

[5] Cfr. Giovanni Crisostomo. PG 52, 416. In: Idem, pg. 82.

[6] Cfr. Santo Agostino. Sermone 61. In: Idem, pg. 81.

[7] Cfr. Santo Agostino. In epistolam ad Partos, PL 35, 2018. In: Idem, pgs. 88-89.

[8] Cfr. Santo Agostino. PL 35, 1760. In: Idem, pg 82.

[9] Cfr. Basílio de Cesareia. Homilia sobre Lucas 12, 7. São Paulo, Paulus, 2015, pg. 36.

[10] Cfr. San Gregorio Nazianzeno. L´amore per i poveri, PG 35, 890s. In: Idem, pg. 90.

[11] Cfr. San Girolamo. PL 22,985. In: Idem, pg 81. 

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25 abril 2022, 11:51