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Cuidar e enfrentar com solidariedade a COVID-19

Para enfrentar a COVID-19 todos fomos obrigados a reinventarmos e solidarizarmos urgentemente, para sobreviver - ressignificar para não enlouquecer.

Padre Wladimir Porreca - Diocese de São João da Boa Vista

A realidade pandêmica da COVID-19 obriga as pessoas a entenderem, refletirem e tomarem decisão sobre a novidade e rapidez da disseminação do SARS-CoV-2, acima de tudo para manterem a vida e a integridade humanas, bem como, serem forcadas à um olhar mais realista sobre a saúde pública, que poderia colapsar e não conseguir atender a demanda de doentes.

Para enfrentar a COVID-19 todos fomos obrigados a reinventarmos e solidarizarmos urgentemente, para sobreviver - ressignificar para não enlouquecer. De fato, as mudanças que vinham sendo paulatinamente implantadas e incorporadas na humanidade, sofreram rápida aceleração e, vertiginosamente, impuseram-se; aquilo que era tendência para décadas se instalou como realidade concreta em dias.

A crise sanitária estabeleceu um paradoxo global, ao mesmo tempo que conseguiu paralisar pelo medo a humanidade com os seus devastadores efeitos, ascendeu um movimento de rompimento, mesmo parcial, com as antigas estruturas e dinâmicas pessoais e sociais, convencionadamente cristalizadas nos pilares do individualismo e relativismo. E urgiu reconstruir diferentes estilos de vida solidárias e formas mais humanas e humanizantes das pessoas se relacionarem.

Reacendeu em grande parte nas pessoas o princípio de alteridade que desenvolveu em solidariedade, que simultaneamente se tornou parte e o todo, gerando ciclos e motivando mobilizações diversas, desde campanhas para ajudar pessoas em estado de vulnerabilidade e desigualdade de saúde física, social, psíquica, até mesmo campanhas na distribuição de alimentos, na doação de produtos de higiene, nos atendimentos profissionais gratuitos, inúmeras campanhas e ações de solidariedade se espalharam pelo Planeta.

No grave cenário de eclosão da pandemia, o enfrentamento a COVID-19 pela solidariedade, só obteve sucesso por ter muitas iniciativas que comportavam aspectos de cooperação e colaboração, um status social humano e não de natureza contratual - mercantil, uma exigência sobretudo moral e ética. O fator solidariedade como dádiva sem espera de retribuição equivalente, atraiu atenção, em meio a uma crise humanitária, pois nela não existiu nenhuma certeza, nem garantia de que haverá um retorno pela ação praticada.

Ações solidárias aconteceram, umas foram iniciadas, outras se fortaleceram e algumas foram idealizadas, e criativamente outras serão elaboradas. Para terem a mesma eficácia será necessário reascender em cada ação o dar, receber sem a expectativa de retorno equivalente, e receber sem a obrigação da contrapartida, paradoxalmente, com uma certa liberdade. Assim, a solidariedade terá ações solidárias livres e coletivas, como a matriz universal de qualquer sociabilidade humana. 

De fato, a solidariedade contagiou as pessoas, independente das razões que a sustentavam; ser solidário em tempo de pandemia tomou destaque e permanece em alta e saiu do papel e de falas utópicas. Contudo, deve-se considerar que a solidariedade, como qualidade humana, está sujeita às limitações próprias do humano e a seus condicionamentos sociais, e se assumir uma “roupagem” de bons sentimentos pode ser um fator de risco para as pessoas. O ciclo da generosidade e reciprocidade pode assumir uma direção de poder e violência que caracterizam os regimes do capitalismo autoritário e selvagem. Pois aquele que recebe o gesto solidário contrai forçosamente uma dívida, que gera devedores, e assim pode ser fator de autoritarismo e submissão, que anula o outro e o domina por meio da suposta dívida.

No cenário da COVID-19, muitas ações solidárias puderam ultrapassar alguns limites humanos e fronteiras da lógica mercantil, considerados instransponíveis, mesmo que timidamente diante da conjuntura mundial, mas com grande repercussão e valor para o exercício da dádiva solidária. Daí a importância de que a pessoa isoladamente assuma o compromisso ao bem comum solidário e, seja capaz de sensibilizar outros a terem a mesma responsabilidade e compromisso. Impregnada no pessoal atua coletivamente.

A realidade pandêmica da COVID-19 como um fato social total é desafiante, mas favorece singulares possibilidades em nosso tempo, que pode gerar um tempo novo que pode reflorescer diferentes humanidades e sociabilidades, por meio das ações nobres de solidariedade, que se entrelaçam e dão uma forma na tessitura social de aldeia global ligada por elos frágeis que devem ser sempre reafirmados e ressignificados.

A solidariedade relacional como dádiva teve um patamar concreto e promissor com o Pacto Global das Nações Unidas, pois este teve uma grande iniciativa corporativa de sustentabilidade social em forma de preocupação, responsabilidade e cooperação internacional. Este Pacto incentiva os líderes empresariais de todos os lugares, bem como as comunidades e grupos que se unam para apoiar as pessoas coletivamente e os negócios afetados pela proliferação do SARS-CoV-2.

A sustentabilidade social poderá sustentar a manutenção de solidariedade relacional como dádiva, por implicar a garantia de forma equivalente e complementar, de que os recursos que estão sendo usados pelas pessoas no momento de pandemia, serão suficientes para as gerações futuras, sem prejuízo a pessoas, a sociedade, a ecologia e a economia. Pensar em sustentabilidade é considerar a continuidade da ecologia humana, por uma solidariedade que ultrapasse o resolver problemas, como é o caso da pandemia.

Diante da vertiginosa pandemia podemos repensar sobre o nosso modo de viver individualista e egoísta, relacionando aspectos sociais, econômicos e ambientais, com o objetivo de estabelecermos então, uma rede de sustentabilidade social. Redes éticas que sustentem ações solidárias e abram novos caminhos para reduzir as enormes desigualdades, o racismo estrutural e que auxiliem a ampliar a democracia, por meio de reforma política, lançando as bases para o desenvolvimento sustentável. A solidariedade é um bom caminho já iniciado para mudar as estruturas e dinâmicas de ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres.

Quando cessarem os contágios, quando controlarem a ferocidade do vírus - por meio de vacinas - crescerem as imunidades e a doença perder a soberania, será que a humanidade poderá efetivar a reinvenção pessoal e social solidárias, já iniciada no tempo pandêmico? E ainda, será possível tornar mais efetivo a reconstrução e manutenção de novos padrões solidários que poderão permanecer de forma ética e duradoura? 

Diante das perguntas sobre o pós-pandemia e a solidariedade, prefiro me sustentar pela natureza, que me ensina que depois de um período de mortes, com todas as suas consequências e implicações, em geral, tende advir uma explosão de vida. promovida em grande parte, pela permanência e (res) surgimento de ações solidárias, como flores que despontam no início da primavera, depois de um rigoroso inverno, porque o quê as mantinha vivas, permaneceram.

A companhia da solidariedade como dádiva, no tempo pandêmico e pós, maior que princípio altruísta, caritativo e cooperativo, é promissora possibilidade no empenho em reorientar a humanidade a encarar a vida em toda a sua beleza e qualidade. E ainda fortalecer um paradigma humano e humanizante de relações viver que transcende, que transite pelos caminhos da ética.

A solidariedade como dádiva é um recurso necessário e fecundo no enfrentamento desta crise sanitária da COVID-19, pois colabora para que o ilusório sistema das onipotências e prepotências cedam lugar para a humanização por meio da colaboração, partilha, sentido de vida, relações baseadas na gratuidade e na experiencia da dádiva. Talvez ela será mais necessária ainda, quando a pandemia da COVID-19 passar, porque a realidade a ser vivida, não será a vida, mas o “para quê” viver. 

Não sabemos se a explosão solidária terá o mesmo vigor no pós-pandemia, ou mesmo se as ações solidárias continuarão a ser exercidas, nem se elas conseguiram atingir a totalidade das camadas sociais, ou ainda, se foram utilizadas somente em vista do bem comum.

O que sabemos é que uma cultura não se muda do dia para noite, e que, no cenário pandêmico da COVID-19, a humanidade pôde experimentar diversas formas de solidariedade como dádiva, como um precioso recurso. Recurso que reascendeu e motivou, em grande parte nas pessoas e organismos sociais e governamentais e, na maioria dos países do Planeta, inúmeras ações concretas éticas e sustentáveis, com a finalidade direcionada em defender, proteger e preservar a vida humana. 

Que tipo de mundo surgirá após a COVID-19 ainda está em aberto para contestação. Para sustentar a esperança por um mundo mais igualitário e justo, precisamos trabalhar com o propósito comum de cuidar e concretizar uma nova realidade baseada na solidariedade e cooperação, proteção da saúde e resgate dos direitos e dignidade das pessoas.

No curso pandêmico da COVID-19, que caminha lentamente e possivelmente para seu desfecho, longe do desejável, conseguimos ressignificar e recriar muitas circunstâncias. A capacidade de solidariedade possibilitou que, em muitos lugares despreparados e surpresos pela avassaladora pandemia, a saúde pública não entrasse de forma colossal em colapso. E as questões éticas emergidas pudessem, pelo menos em muitas partes do planeta, serem sustentadas pelas redes de colaboração que promovem coesão e altruísmo, sustentando a solidariedade entre as pessoas.          

E como nos exorta o Papa Francisco * a solidariedade exprime “o amor pelo outro de maneira concreta, não como um sentimento vago, mas como a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. A solidariedade ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus”.

* A cultura do cuidado como percurso de paz. Mensagem do Santo Padre Francisco para a celebração do 54º dia mundial da paz - 1º de janeiro de 2021

- Observação: o texto é parte do artigo: Porreca, W. (2021). Enfrentar com solidariedade a COVID-19. DOI: https://doi.org/10.30554/archmed.21.1.4000.2021

 

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11 janeiro 2021, 09:24