Olinda com o arcebispo de Maputo, Dom Francisco Chimoio Olinda com o arcebispo de Maputo, Dom Francisco Chimoio  A história

Não deixar que a pobreza material dê lugar à pobreza antropológica

Olinda Mugabe, moçambicana, é Presidente da Associação “Reencontro”, que se dedica a crianças órfãs e vulneráveis devido ao HIV-SIDA. Para ela, a visita do Papa a Moçambique representa um suplemento de energia para o trabalho da Associação.

Dulce Araújo – Cidade do Vaticano

Oriento-me pela Palavra de Deus. Então, quando consigo fazer algo em sintonia com as Obras de Misericórdia, me sinto feliz, realizada”- assim se exprime Olinda Mugabe ao falar de um dos mais recentes projectos da Associação moçambicana “Reencontro”, organismo que cuida de crianças órfãs e vulneráveis devido à SIDA e de que é co-fundadora e Presidente.  Chamam de “Madalena” a esse projecto, cujo título oficial é “Viva Mais”; levam-no a cabo em parceria com o Ministério da Saúde, com o qual têm também em curso o projecto COVIDA, para acompanhamento de órfãos e vulneráveis.

“Viva Mais” consiste em ir de noite por vários distritos das Províncias de Maputo e Gaza e identificar as chamadas "trabalhadoras do sexo", aconselhá-las, fazer rastreio do HIV-SIDA, encaminhá-las para postos de saúde, ver se há doentes na família, etc. O objectivo final é convencê-las a mudar de vida. Trata-se de um “projecto difícil”, mas que, nos quase dois anos de actuação, já está a dar frutos: algumas já se tornaram mesmo activistas e conselheiras no seio do projecto. Olinda acompanha muitas vezes a equipa do “Viva Mais” ao terreno. “É que se me aproximo, converso com elas, entendo melhor as suas dificuldades”. Para ela, este projecto é uma “vitória”, porque lida “com pessoas que são discriminadas” – afirma, citando oportunas passagens do Evangelho, e explica que no início houve uma certa relutância na Assembleia geral da Reencontro em aceitar o projecto. “Ah não, nós somos cristãos!” – exclamaram.  Mas, ela fez-lhes compreender que o “Mestre acolheu os pecadores” e que se não aceitassem o projecto não estariam a “seguir a linha do Mestre”.

Despertai-vos

Estava-se no início dos anos 90, quando Olinda Mugabe, enfermeira de formação, com longa experiência de trabalho também numa organização moçambicana de desenvolvimento e apoio à família, se deu conta da preocupante difusão da SIDA em Moçambique. As  pessoas pareciam, todavia, estar a dormir. Estavam muito mais preocupadas com a guerra civil. Então para as acordar, começou por ajudar alguns doentes a criar uma Associação (a que deram o nome de “Quimquimuca”  - Despertai-vos), e estimulou-os a dar a cara nos meios de comunicação para que as pessoas pudessem acreditar.

Atingido este objectivo, Olinda procurou ir para outros afazeres, mas as pessoas começaram a assinalar-lhe crianças que, entretanto, tinham perdido os pais e que precisavam de ajuda.  Não pôde ficar indiferente. Surgiu assim a “Reencontro”, organismo sem fins lucrativos, que hoje assiste cerca de dez mil crianças órfãs devido a essa síndrome, nas províncias de Maputo e Gaza, a sul do país, onde a prevalência da doença é a mais elevada em Moçambique: 22,9% e 24,4%. A média nacional em 2017 era de 13,2%.

Reencontro de novos parentes para as crianças órfãs

Quem passar pelo Bairro Ferroviário das Mahotas, na periferia sul de Maputo notará, certamente, na Avenida Cardeal D. Alexandre Maria dos Santos, a nova sede da “Reencontro”, inaugurada em 2012.  Chama-se “Centro de Acolhimento Beata Maria da Paixão para Crianças Órfãs e Vulneráveis”. Um nome que tem toda uma história. Maria da Paixão está, de facto, na base do surgimento da  Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria a que as fundadoras da Reencontro pertenceram no passado e à qual  continuam ligadas ainda hoje por uma relação de confiança e colaboração, especialmente no acolhimento e educação das meninas mais expostas a perigos.

Olinda com a irmã Margarida em casa das MFM em Namaacha, Província do Maputo
Olinda com a irmã Margarida em casa das MFM em Namaacha, Província do Maputo
 Meninas em casa das irmãs em Namaacha indicam o Papa Francisco num postal ao lado do Papa emérito, Bento XVI
Meninas em casa das irmãs em Namaacha indicam o Papa Francisco num postal ao lado do Papa emérito, Bento XVI

Quando adolescentes, Olinda e as companheiras queriam, de facto, ser religiosas. Por diversas razões, não chegaram à meta. Mas ficou a espiritualidade franciscana, evangélica, de ajudar o outro. E vários anos depois, a convite dela, voltaram a reencontrar-se e canalizaram esse desejo de ajudar o outro para essa associação de apoio a crianças orfãs e vulneráveis. “Foi um encontro de abraços, gritarias, risos, choros, grandes emoções…” – recordava Olinda em entrevista à Rádio Vaticano quando, em 2013, a Emissora do Papa realizou, no âmbito do projecto radiofónico "Hidden Women", uma série de reportagens sobre o trabalho desta benemérita Associação.  

Deus voltou a juntar-nos para essa boa causa. A nossa vocação reactivou-se e sentimo-nos felizes por poder vivê-la na condição em que nos encontramos,  casadas, solteiras, viúvas, e por sentir que, afinal, não estamos perdidas no mundo. Deus continua a estar connosco, não saiu de nós.”

Então, não podiam encontrar melhor nome para a Associação: Reencontro, “reencontro entre nós próprias, reencontro de novos parentes para as crianças órfãs, reencontro de nós mesmas com a nossa missão: amor, caridade, ajuda mútua”.

Era uma oportunidade que Deus lhes dava, mais uma vez,  para O seguirem e, cada uma com esse espírito, começou a contribuir com o pouco que tinha (um prato, uma mesa, uma cadeira, um copo de arroz, ou de açúcar) para ajudar as crianças,  até que, em 2002, a Associação foi formalizada, reconhecida e começou a crescer.

 Olinda com algumas co-fundadoras da Reencontro
Olinda com algumas co-fundadoras da Reencontro

Assistência material, humana e espiritual às crianças

Andar por essas duas Províncias fronteiriças com a África do Sul – Maputo e Gaza, onde a Reencontro desenvolve a sua acção, permitiu constatar quão devastadora tem sido a SIDA para as famílias: lares completamente acéfalos, crianças, muitas vezes seropositivas, a viver sós ou com avós já idosos e frágeis.

Com a ajuda de vários organismos como a USAID, Global Fund for Children, Cross International, mas também de comerciantes e benfeitores locais, a Reencontro auxilia essas crianças em tudo o que pode: alimentação, educação, saúde, vestuário, habitação, acompanhamento, procura de “padrinhos” e “madrinhas” para adopção à distância, transmissão de valores religiosos, morais e cívicos, afecto. Tudo através de serviços das delegações nas duas províncias, mas sobretudo de um importante número de “activistas”, homens e mulheres voluntários que, para a Olinda, são “o olho da Reencontro” nas comunidades, onde a maior parte das crianças vivem no seu ambiente natural.

Avós com netos órfãos
Avós com netos órfãos

Sinais de apreço e o sonho da auto-sustentabilidade

Em pouco mais de vinte anos de acção, a Reencontro, fundada em 1998, “cresceu muito” e, prova de que está no caminho certo, são os elogios que recebe tanto do Governo, como da Igreja, algo que as deixa felizes – sublinha a fundadora.

Também os beneficiários apreciam muito o trabalho da Reencontro, mas - continua a Presidente – as dificuldades são muitas e prendem-se sobretudo com a auto-sustentabilidade do organismo enquanto instituição; a Associação tem ido para a frente com projectos pontuais e quando este ou aquele projecto acaba, pára o serviço. O sonho é ter, por exemplo, um tractor para trabalhar as duas amplas “machambas” que a Associação tem, ter um tanque-rede para a criação de peixe, uma pequena fábrica de moagem do milho e pôr os produtos à venda. Mas, faltam meios para esses investimentos. As emergências são tantas e a política dos doadores é a capacitação económica dos beneficiários. O que está certo - admite a Olinda. O problema, porém, é que quando o doador se retira, a Reencontro não tem capacidade para dar continuidade institucional aos projectos.

“Há projectos de três anos, de cinco anos e quando acaba o projecto, voltamos à estaca zero.”

E o Governo não poderá, por ventura, ajudar a concretizar esse sonho?!  “É um terreno a explorar” - responde Olinda.  Quanto à Igreja, apoia, confia, aprecia, reconhece o valor altruísta e evangélico desta acção - confirmou ainda recentemente D. Francisco Chimoio - mas não pode, claro, ajudar financeiramente -  esclarece a Olinda, dando exemplos de sucesso do trabalho da Reencontro.

Exemplos de sucesso

Um deles é o de um jovem agora com 19 anos. Era um menino traquino que sofria muito pela falta dos pais. Vivia com a avó e os irmãozinhos, seropositivos. Deixou de ir para a escola e começou a enveredar por maus caminhos. A Reencontro pegou nele, aconselhou-o, inseriu-o nalgumas actividades e hoje ele trabalha, estuda e garante o sustento à avó e aos irmãos. Um outro rapaz,  o Hassane, graças ao acompanhamento da Reencontro em Xai-Xai (Gaza), pôde fazer licenciatura em inglês em línguas e hoje é professor de inglês numa escola secundária. «Muitos já se auto-sustentam a si e às próprias famílias e não precisam mais de ajudas. E quando algum/a se casa, Olinda e outros membros da Reencontro não podem faltar.

O casamento de uma jovem, membro de uma família que recebe apoio da Reencontro. Olinda ao lado da noiva
O casamento de uma jovem, membro de uma família que recebe apoio da Reencontro. Olinda ao lado da noiva

Desde o início das suas actividades, a Reencontro procurou envolver os próprios jovens órfãos na luta contra a SIDA. Nasceu assim o projecto JOLUSI, que chegou a ter muito sucesso, mas com o passar dos anos, os mais entusiastas e activos foram saindo para outras lides e hoje o projecto está com menos força. Alfredo Carlos Changale, órfão de pai, já foi chefe do grupo JOLUSI. Levantava-se cedo, ia fazer pequenos comércios para ajudar a mãe e os irmãos e depois ia às actividades da JOLUSI.

O projecto JOLUSI precisaria de ser revitalizado, até porque os jovens, embora tendo medo da SIDA, continuam a expor-se ao perigo de a contrair. “Então, esta é uma preocupação. Temos de continuar a combater até que as pessoas se mentalizem que para acabarmos com o HIV-SIDA temos de mudar o nosso comportamento” – diz Olinda que, enquanto pioneira na consciencialização contra esta doença nota, com alegria, uma diminuição da atitude discriminatória das pessoas em relação aos doentes de SIDA. Hoje, refere, tende-se a considerar esta doença um mal social a ser combatido por todos. Com uma mudança de comportamento e a maior facilidade que se tem hoje no acesso aos anti-retrovirais, garantidas pelo Governo, tudo pode melhorar.  

O Projecto de envolvimento de jovens órfãos na luta contra a SIDA
O Projecto de envolvimento de jovens órfãos na luta contra a SIDA

Apadrinhamento

A Reencontro está também muito empenhada no projecto “Apadrinhamento”, que consiste na procura de padrinhos e madrinhas para o apoio à distancia das crianças mais carenciadas. Este projecto que tem actualmente três mil crianças inscritas é realizada em colaboração com a Child Fund. O primeiro passo – explica Reginaldo Marriquele, um dos membros do projecto – é o registo da criança no bairro mediante determinados critérios. Formado em Desenvolvimento Comunitário, Reginaldo que está na Reencontro há vários anos, vê neste projecto não só “um trabalho que desempenhava com todo o profissionalismo, mas é, de certo modo, uma missão”.

Avó com netos órfãos
Avó com netos órfãos

Pessoa de profunda fé e optimista, Olinda, no seu estilo pacato e tranquilo, regozija-se com os recentes acordos de paz entre o Governo e a RENAMO pois, com as constantes ameaças de conflito, temiam não poder deslocar-se para assistir as pessoas fora da capital. Agora estão mais confiantes e esperam que a paz seja duradoura.

Também os ciclones que fustigaram o centro e o norte de Moçambique em Março e Abril passados, provocando centenas de mortos, tiveram paradoxalmente, algum impacto positivo, na medida em que reforçou o sentido de solidariedade nas pessoas. E como ninguém é tão pobre que não possa dar nada, a Reencontro, com a ajuda dos seus membros, recolheu material que foi doado à população da Beira, através das autoridades locais.

Agora aguardam com ânsia e euforia a chegada do Papa. Para a Olinda este Papa é um “modelo vivo de Cristo” e tornará todos mais fortes no doar-se aos mais necessitados, especialmente crianças, doentes, pessoas com deficiência. A Olinda, quanto a ela, contentar-se-ia de tocar a túnica do Papa, como a mulher hemorrágica do Evangelho, mas serão muitos nessas condições – fez-lhe notar, sorrindo, uma irmã que se ocupou dos paramentos para a missa papal. E enquanto os seus membros colaboraram nas suas diferentes paróquias na preparação da visita, a Reencontro enquanto tal alberga, na sua sede, uma dúzia de peregrinos idos de províncias longínquas.

Um presente no voo papal 

No voo papal vai uma prenda para os membros da Reencontro: material escolar e desportivo, roupas, brinquedos e uma pequena ajuda financeira. É fruto de uma recolha feita pela Associação de Mulheres no Vaticano, D.VA, entre sócias, colegas de trabalho e pessoas de boa-vontade. Um sinal de amor e solidariedade entre duas associações femininas que têm em comum os valores cristãos e a atenção pelo outro, especialmente pelas crianças.

É que tudo se deve fazer para que cresçam com dignidade, livres das ameaças daquela pobreza antropológica que a pobreza material, gerada pela orfandade e outros factores, pode gerar.

Construir e preservar a riqueza antropológica

Olinda com meninos do projecto "Infância feliz", um dos vários projectos actuais da Reencontro
Olinda com meninos do projecto "Infância feliz", um dos vários projectos actuais da Reencontro

E é pela construção e preservação da riqueza antropológica e cultural dos moçambicanos que luta Mónica Bila, responsável da sede da Reencontro em Xai-Xai. Para esta pedagoga moçambicana “nenhuma pobreza justifica não ter a casa asseada ou mandar a criança à escola sem um lápis.” Por isso, em 1998, depois de vários debates com as pessoas, criaram um Clube de 27 mulheres para estimular as pessoas a resolver os problemas com os meios de que dispõem. Estava-se em 1998. Nesse mesmo ano nascia em Maputo a Reencontro, com a qual viria esse Clube a fundir-se, dando origem à Delegação de Gaza.

Precisamos das vossas orações

Perante esse acento da Mónica na educação moral e cívica das pessoas para construírem e manterem a sua dignidade e integridade antropológica, a fundadora da Reencontro acrescenta:  “é para isso que trabalhamos e a ajuda dos outros é bem-vinda, mas também as orações. Precisamos da vossa força e essa força pode vir também da oração.” 

Olinda com a enfermeira Flora, da Reencontro, uma avó e a neta crescida por ela
Olinda com a enfermeira Flora, da Reencontro, uma avó e a neta crescida por ela

 

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04 setembro 2019, 10:20