Mar Awa II, Catholicos e Patriarca da Igreja Assíria do Oriente com o Papa Francisco, em 19 de novembro de 2022 Mar Awa II, Catholicos e Patriarca da Igreja Assíria do Oriente com o Papa Francisco, em 19 de novembro de 2022 

Mar Awa III: um programa eclesial sinodal é frutífero se levar os fiéis a caminhar na fé dos Apóstolos, mantida pela Tradição

"“Não houve nenhum anátema entre a antiga Igreja Assíria do Oriente e a Igreja de Roma. A separação ocorreu no Concílio de Éfeso, no ano 431, mas o “Depositum fidei”, que mantínhamos antes de Éfeso continua sendo compartilhado e devemos mantê-lo juntos sempre."

Por Gianni Valente 

No dia 19 de novembro do corrente, o Patriarca da Igreja Assíria do Oriente, Mar Awa III, fez uma visita fraterna ao Papa Francisco, no Vaticano.

Durante a sua primeira viagem a Roma como Patriarca, Mar Awa III proferiu uma conferência na Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino,  o Angelicum” na qual abordou o tema da "teologia da sinodalidade na Igreja do Oriente", no âmbito do Simpósio Ecumênico Internacional Listening to the East”("Ouvir o Oriente"), promovido pela Universidade e a Fundação Pro Oriente. O objetivo da iniciativa era contar com depoimentos, aprofundamentos e testemunhos sobre a “sinodalidade na vida e na missão das Igrejas Ortodoxas e das antigas Igrejas Orientais”.

Em uma longa entrevista, concedida à Agência de notícias Fides, o Patriarca da Igreja Assíria do Oriente, Mar Awa III, ofereceu elementos sugestivos e úteis, sob a perspectiva oriental, sobre o processo sinodal iniciado na Igreja Católica. De fato, disse: “Um programa eclesial sinodal produz frutos se levar os fiéis a caminhar na fé dos Apóstolos, mantida pela Tradição. Por isso, a dinâmica sinodal não pode ser utilizada para causar fraturas, entre os membros da Igreja, sobre questões de fé ou moral".

Na entrevista, o Patriarca assírio também criticou as campanhas que "demonizam a Igreja Ortodoxa Russa e seu Patriarca Kirill”. Porém, deu respostas inesperadas e esclarecedoras sobre outros aspectos: a condição dos cristãos no Oriente Médio, a busca de uma data comum para a celebração da Páscoa, o caminho para a plena comunhão entre a Igreja Assíria do Oriente e a Igreja de Roma; fez ainda um aceno sobre o "segredo" do grande progresso missionário da antiga Igreja do Oriente, que, nos primeiros séculos do cristianismo, chegou a levar o Evangelho até à China, Mongólia e Península Arábica.

 

No processo sinodal, iniciado na Igreja Católica, alguns sugerem olhar para as Igrejas do Oriente para aprender o que significa “sinodalidade”. Segundo a sua experiência, qual o critério que poderia tornar mais frutífero, em âmbito eclesial, o exercício da sinodalidade?

“A dinâmica sinodal da Igreja consiste em caminhar juntos na fé da Tradição Apostólica. A modalidade sinodal serve para salvaguardar e confirmar a unidade da fé, neste caminho, tornando-o mais acessível a todos e aliviando certos fardos desnecessários e práticas eclesiais que só causam entraves. Portanto, o critério para avaliar a validade e a fecundidade de um processo sinodal só será possível se ajudar os fiéis a caminhar na fé dos Apóstolos, mantida pela Tradição, no tempo presente e na condição histórica atual. O exercício da sinodalidade, como verdadeiro caminho de todos os batizados e de todos os bispos, sucessores dos Apóstolos, nunca deverá ser utilizado para afastar-se da Tradição Apostólica, a fé transmitida pelos Apóstolos, que une a Igreja Católica às antigas Igrejas do Oriente. Compartilhamos o mesmo “Depositum fidei” recebido dos Apóstolos”.

O caminho sinodal, em muitos aspectos, é apresentado como um processo dialético entre as diferentes posições, que buscam consenso para manter ou mudar a posição da Igreja sobre questões eclesiais e doutrinais sensíveis. Tais dinâmicas se parecem com as “políticas e parlamentares".

“Alguém me falou a este respeito. Podemos, talvez, correr este risco se passarmos de uma gestão centralizada - onde tudo está nas mãos de uma só pessoa - a um modo sinodal, que impulsiona a dinâmica eclesial. No entanto, o modelo sinodal das Igrejas do Oriente não é interessante, pois se parece muito com os sistemas modernos de gerenciamento do poder, porque é mais congenial expressar consenso sobre o “Depositum fidei” e mantê-lo intacto. Uma autêntica dinâmica sinodal surge, precisamente, do fato de os bispos e todos os batizados caminharem juntos na mesma fé, convergindo para a busca conjunta das formas e práticas mais adequadas para dar testemunho da mesma fé, no tempo presente. Imagino que a maioria dos Bispos católicos compartilha o desejo de manter a doutrina tradicional, também sobre questões matrimoniais. As dinâmicas sinodais são expressão do caminho de toda a Igreja nas pegadas da fé dos Apóstolos; desta forma, não podem ser utilizadas para causar fraturas entre os membros da Igreja, em questões de fé ou de moral. Pelo contrário, o exercício da sinodalidade serve também para manter a unidade na caminhada de diferentes sensibilidades, inclusive as que desejam se adaptar à mentalidade do mundo de hoje”.

Muitos cristãos estão deixando o Oriente Médio. No entanto, o Patriarcado Assírio, voltou à Mesopotâmia, há poucos anos, após oito décadas de "exílio": primeiro, em Chipre e, depois, nos EUA. Agora o senhor está residindo em Erbil, no Curdistão iraquiano. Em sua opinião, o que é preciso fazer, no Iraque, para salvar os cristãos no Oriente Médio?

“É preciso maior esforço da parte das autoridades políticas e militares, para que a segurança seja mantida e para que o outro "Estado Islâmico" não volte mais ou entre alguns anos, para semear espalhar temor e terror entre os cristãos. Devem ser dadas também oportunidades de emprego, para que haja um mínimo de segurança econômica. A situação, agora, é difícil para todos, ainda mais para os grupos sociais mais frágeis e minoritários. A corrupção generalizada no país só piora a convivência. Porém, em certos lugares, há sinais de esperança, como no Curdistão iraquiano”.

O Patriarca latino emérito de Jerusalém, Michel Sabbah, declarou que o futuro da presença dos cristãos no Oriente Médio não é uma questão de números, mas de fé...

“Se não há vínculo de afeto e gratidão com a terra onde se nasce e onde se recebeu o dom da fé, então é normal, por razões legítimas, que muitas pessoas prefiram partir. Nem tudo pode ser justificado por causa da discriminação e dos maus-tratos. Os cristãos só podem permanecer se o vínculo de amor com a sua terra e com a sua rica história de fé forem reavivados, como testemunham os antigos mosteiros. A este respeito, as autoridades civis também podem fazer alguma coisa. Sugeri ao Primeiro Ministro da Região Autônoma do Curdistão, Masrour Barzani, que sejam promovidos o turismo religioso, as peregrinações aos antigos mosteiros e aos lugares sagrados das nossas Igrejas. Somente assim, nosso povo emigrante e seus descendentes da diáspora poderão retornar às suas antigas aldeias de origem e reviver, com suas igrejas, os laços com as raízes de seus antepassados”.

O diálogo do Papa Francisco com os representantes influentes do Islamismo, centrado na redescoberta da fraternidade universal e inspirado no Documento de Abu Dhabi, pode influenciar na situação dos cristãos no Oriente Médio?

“Talvez, alguns possam pensar que o diálogo sobre fraternidade é expressão de uma perspectiva idealista, com poucas chances de gerar resultados concretos. Falei sobre isto também em meu encontro com o Papa Francisco. Acho que esses encontros e diálogos são úteis, embora permaneçam como propósitos e declarações. No entanto, é prazeroso ver que o Papa e outros chefes de Igrejas se preocupam com a presença dos cristãos no Oriente Médio. É por isso, também, que mantêm relações fraternas e diálogos com líderes muçulmanos. Os cidadãos muçulmanos, ao ver seus líderes dialogar com altos representantes das Igrejas, podem superar preconceitos e sentimentos hostis com os cristãos. Enfim, esses problemas não se resolvem por magia, mas podem contribuir”.

 

Entre a Igreja de Roma e a Igreja Assíria do Oriente, nunca houve uma ruptura direta sobre questões dogmáticas e teológicas. Vários resultados importantes foram possíveis graças ao diálogo teológico entre ambas as Igrejas. No discurso que o Papa Francisco lhe dirigiu, expressou o desejo de que a Igreja Assíria se tornasse a primeira entre as antigas Igrejas do Oriente, com as quais a Igreja de Roma poderia chegar à plena comunhão sacramental...

“Não houve nenhum anátema entre a antiga Igreja Assíria do Oriente e a Igreja de Roma. A separação ocorreu no Concílio de Éfeso, no ano 431, mas o “Depositum fidei”, que mantínhamos antes de Éfeso continua sendo compartilhado e devemos mantê-lo juntos sempre. Em 2025, celebraremos os 1700 anos do Concílio de Niceia. Por isso, já se fala sobre a possibilidade de um encontro conjunto para celebrar aquele Concílio: a Igreja de Roma, as Igrejas Ortodoxas, as antigas Igrejas do Oriente... Niceia nos une e pertence a todos. Em nossas diferentes liturgias, recitamos o “Creio de Niceia”, embora ainda não estejamos em plena comunhão”.

Como está o caminho do diálogo ecumênico entre a Igreja de Roma e a Assíria, após a declaração cristológica fundamental comum assinada por João Paulo II e o Patriarca Mar Dinkha IV?

“Em 2017, assinamos um texto, no qual católicos e assírios reconhecem mutuamente a validade dos sacramentos celebrados e administrados na Igreja Católica e na Igreja Assíria do Oriente. Logo, podemos dizer que a segunda etapa do caminho do diálogo ecumênico se concluiu com sucesso. Agora, entramos numa terceira fase, que se refere à Constituição da Igreja. Naturalmente, nesta fase, incluiu-se também a questão da primazia do Bispo de Roma e a questão da comunhão e da primazia, em nível local e universal”.

No que consiste o consenso sobre a validade dos Sacramentos?

“Ainda não chegamos à plena e incondicionada possibilidade de receber os Sacramentos, administrados por sacerdotes e bispos da outra Igreja. Desde 2001, entrou em vigor um acordo, na época de João Paulo II e Mar Dinkha IV, que permitia, entre ambas as Igrejas, exercer uma ‘hospitalidade sacramental especial’, por motivos de necessidade pastoral. Neste acordo, ainda em vigor, as duas Igrejas reconhecem e concordam sobre a doutrina e a teologia sacramental. No entanto, a plena comunhão requer um caminho em longo prazo, que deve ser compartilhado por todas as outras Igrejas não Católicas: um caminho acompanhado por intensas orações e pelo próprio Espírito Santo”.

O cardeal Louis Raphael Sako, Patriarca da Igreja Caldeia – uma Igreja que compartilha do mesmo patrimônio litúrgico e teológico da Igreja Assíria - propôs um caminho de reunificação entre ambas as Igrejas, ‘herdeiras’ da Igreja Antiga do Oriente...

“Com os caldeus, que são nossos irmãos, estamos sempre prontos a falar de unidade e reunificação em uma única Igreja do Oriente. Porém, rejeitamos todo tipo de “uniatismo”, que esteve ao centro do Cisma de 1552. Acho que a proposta do Patriarca Sako, refere-se aos dois Patriarcas, o caldeu e o assírio: os dois deveriam se demitir de suas funções e os bispos assírios e caldeus poderiam eleger juntos outro Patriarca da Igreja do Oriente. Este, porém, deveria estar em comunhão hierárquica com o Papa. Este processo não me parece viável. O interessante mesmo seria voltar às raízes da Igreja Oriental, antes de 1552, para se conscientizar do significado da eclesiologia compartilhada, na época da separação”.

No encontro com o Papa Francisco, foi abordado a questão de encontrar uma data comum para celebrar a Santa Páscoa. O senhor acha que esta poderia ser, realmente, uma possibilidade?

“No Sínodo de 2019, dirigido pelo meu predecessor, Mar Gewargis III, decidimos aceitar a ideia de uma data comum, para a celebração da Páscoa, com as outras Igrejas. Que eu saiba, os coptas e ortodoxos sírios também concordam com esta possibilidade. A este respeito, o Papa Francisco é muito disponível. Ultimamente, Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico de Constantinopla, também expressou sua disponibilidade. Talvez, seria aconselhável, antes, chegar a um acordo, sobre uma data comum para a celebração da Páscoa, entre a Igreja Católica, a Igreja Assíria e as outras antigas Igrejas Orientais. Os Ortodoxos poderiam unir-se, gradualmente, se o consenso amadurecesse em cada uma das Igrejas Ortodoxas”.

Antes de vir a Roma visitar o Papa Francisco, o senhor manteve um encontro com o Patriarca Kirill de Moscou...

“Sim, na semana anterior à minha viagem, fui à Rússia, para encontrar nossa comunidade local. Na ocasião, também mantive um encontro com o Patriarca Kirill, em Moscou. Conversamos longamente sobre a situação atual dos cristãos no Oriente Médio. Ele me pediu também para transmitir suas sinceras saudações ao Papa Francisco, que o fiz com prazer”.

O Patriarca Kirill é atacado como cúmplice e quase corresponsável pela guerra na Ucrânia. O que o senhor pode nos dizer sobre isso e sobre as medidas tomadas contra ele e contra a Igreja Ortodoxa Russa?

“O Patriarca Kirill pareceu ser muito sincero. Em todo o caso, não é justo certa demonização da Igreja Russa ou do próprio Kirill. Ele é chefe de uma Igreja e não de um partido político. É compreensível a sua difícil situação, que deveria ser levada em conta. A decisão da União Europeia de impor sanções “ad personam” contra ele também é inoportuna, pois abre em um grave precedente e contradiz todos os apelos para distinguir a esfera eclesial e política, a Igreja e o governo secular. Esta decisão poderia se alargar a outros líderes e expoentes de outras Igrejas, submetidos a avaliações negativas por parte de algum partido político”.

A guerra na Ucrânia é uma grande tragédia também para os cristãos. O senhor conversou sobre isso com Kirill?

“Eu expressei o desejo de se chegar um cessar-fogo, em breve tempo, e de se encontrar uma solução para pôr fim aos sofrimentos das pessoas inermes. Ucranianos e russos compartilham do mesmo batismo e bebem da mesma fonte espiritual. Achei injustificada a decisão de proibir os ortodoxos russos de participar de encontros ecumênicos, como aconteceu na Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que se realizou, entre agosto e setembro passados, em Karlsruhe, Alemanha. Deve-se sempre deixar as portas abertas para o diálogo. Então, segundo certos raciocínios, dever-se-ia, por coerência, proibir todos os capelães militares, que acompanham os soldados na guerra, tanto de um lado como do outro”.

A teologia e a espiritualidade da Igreja Assíria dão muita ênfase sobre a natureza humana de Cristo. Esta perspectiva espiritual não poderia ser adotada também no anúncio cristão, sobretudo neste período em que vivemos?

“Nos livros da teologia clássica está escrito que a Igreja Assíria dá uma forte ênfase sobre a humanidade de Cristo. Porém, antes de tudo, é preciso deixar claro que professamos a unidade da divindade e a humanidade na única pessoa de Cristo. Segundo as Escrituras e os vários Padres da Igreja, reconhecemos que contemplamos o mistério da divindade de Cristo através dos gestos concretos da sua humanidade. Isto faz parte da experiência diária dos cristãos quando rezam, vão à missa e recebem a Eucaristia”.

Ao proclamar o Evangelho com esta ênfase, a antiga Igreja Assíria do Oriente viveu uma das mais impressionantes aventuras missionárias da história. O que esta experiência dos primeiros séculos de cristianismo pode sugerir aos missionários de hoje?

“Em 1904, em Turfan, atual província chinesa de Xinjiang, foi encontrado um livro de orações, cujas fórmulas eram em siríaco e os títulos em língua local. São encontrados, ainda hoje, ruinas de igrejas e mosteiros, pertencentes àquele período de cristianismo, na atual Mongólia e em toda a Península Arábica. Os missionários da antiga Igreja do Oriente eram um verdadeiro "exército" da espiritualidade: eram, sobretudo, monges e monjas, que entravam em contextos moldados por outros pensamentos, culturas antigas e mentalidades religiosas. Eles conquistavam o coração das pessoas com gentileza e não com conquistas dinâmicas; ajudavam as populações locais a encontrar sinais gráficos para colocar por escrito seus idiomas e seu modo de falar. Assim, todas as exigências ou problemas concretos da vida diária tornavam-se oportunidade para fazer o bem, ser amigos e irmãos de todos”.

O 122º Patriarca da Igreja Assíria do Oriente, Mar Awa III, eleito no dia 8 de setembro de 2021, nasceu em Chicago, EUA, há 47 anos e completou sua formação em academias católicas. Logo, é um filho da diáspora assíria nos EUA. David Royel, nome no civil, foi ordenado diácono aos 17 anos de idade e, mais tarde, formou-se em Teologia Sagrada na Universidade Loyola de Chicago e na Saint Mary of the Lake. A seguir, obteve Licenciatura em Teologia Sagrada e Doutorado no Pontifício Instituto Oriental de Roma. David Royel foi ordenado bispo pelo então Patriarca, Mar Dinkha IV, em 2008, recebendo o nome de Awa (que significa “pai” na língua assíria). Assim, tornou-se primeiro bispo da Igreja Assíria nascido nos Estados Unidos. Antes de sua eleição patriarcal, Mar Awa III, era dispo da diocese assíria da Califórnia (EUA) e secretário do Santo Sínodo.

*Agência Fides

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07 dezembro 2022, 07:00