2020.04.14 P. Tony Neves - Batalha de Huambo 2020.04.14 P. Tony Neves - Batalha de Huambo 

Reflexão sobre Covid-19 e guerra de há 30 anos em Angola - III

“55 dias e noites de fogo no Huambo” é o título que o P. Tony Neves dá a esta terceira crónica em que procura estabelecer uma "ponte" de 30 anos entre Angola e Roma, "comparando" as batalhas do planalto central de Angola aos efeitos do Covid-19. E fá-lo no contexto do clima pascal, festa da Vida contra todas as formas de morte.

55 DIAS E NOITES DE FOGO NO HUAMBO

Estamos a celebrar a Páscoa, festa da Vida contra todas as formas de morte. Estamos a combater com unhas e dentes este covid que nos aterroriza pela calada do dia e da noite, fechando-nos em casa agarrados aos nossos medos e digerindo as nossas fragilidades. Vou continuar a estabelecer esta ‘ponte’ de 30 anos entre Angola e Roma, ‘comparando’ as batalhas do planalto aos efeitos do covid.

O Cardeal Tolentino Mendonça aceitou o desafio lançado pela Agência Ecclesia para comentar, durante a Semana Santa, os ‘teatros’ da Paixão. Foi óptimo poder beber da sua sabedoria de biblista e poeta. Disse num dos dias que uma guerra e este vírus provocam efeitos comuns. Citou três: ‘o número elevadíssimo de vítimas, o fechamento das fronteiras, a triagem daqueles que chegam’. Mas pediu para olharmos também para diferenças significativas. De facto, numa guerra, o inimigo é o outro, em que personificamos o perigo. Nesta pandemia – diz o Cardeal Tolentino – ‘percebemos que o perigo somos nós próprios e, por isso, recuamos, renunciamos ao convívio social porque tememos ser nós próprios os transmissores desta infecção e os provocadores deste contágio’. E conclui: ‘Mas, neste momento difícil, crítico, austero, há uma coisa que percebemos e que está no centro da lição de Jesus: é que a Salvação nos chega pelo outro. Nós só nos salvaremos se os outros não nos infectarem, se viverem com responsabilidade, se respeitarem a nossa vida’. Tentarei provar a seguir que, nas guerras que sofri em Angola, a realidade foi bem diferente.

A ‘Batalha do Huambo’ (9 de janeiro a 6 de março de 1993) foi o ‘inferno na terra’. Não sou o autor desta expressão, mas assino-a por baixo. Foram 55 dias e 55 noites sem que os tanques, os canhões, os aviões, as armas ligeiras, os militares nos ataques às habitações … nos deixassem respirar. Dia e noite sem parar, tudo rebentava à nossa volta, tudo nos parecia dizer que a hora de partirmos estava sempre por segundos. A barbárie humana é capaz do pior e eu – e muitas centenas de milhar de habitantes do Huambo – sofremos com esta experiência limite de ter a vida a prémio em cada segundo que passava.

Os que conseguimos, fechamo-nos em casa, último reduto de uma segurança apenas aparente (ver foto). Os combates foram ganhando corpo e geografia. Os ditos ‘vencedores’ conquistaram a cidade casa a casa, daí que precisassem de quase dois meses para hastear a bandeira no palácio do governador, completamente destruído pela artilharia ligeira e pesada e, sobretudo, pela força aérea.

Estava no Seminário Espiritano com cerca de 50 adolescentes e jovens, com Irmãs e com algumas pessoas da vizinhança que ali se refugiaram. Foi a nossa dura quarentena. Escrevi um diário que está bem guardado e multiplicado e será publicado apenas após a minha morte. Mas escrevi, mesmo num quadro de uma absoluta falta de liberdade de expressão, alguns textos que foram publicados e que foram compilados nas colectâneas ‘Missão em Angola’ e ‘Arquidiocese do Huambo 1993’. Voltei a reler e partilharei algumas curtas citações. Escrevi: ‘A guerra parecia ser toda para nós, nos primeiros dias, com obuses a cair a toda a volta e as balas a furarem e a partirem os vidros e as telhas. A aviação metia medo e os estrondos eram enormes. Um corredor foi ‘bunker’, capela, refeitório, dormitório, sala de estar, sala de esperar, sala de desesperar’ (‘Missão em Angola’, p.159).

O tempo foi passando e, ontem como hoje, os media arrasavam-nos: ‘a 21 de janeiro, a Rádio France Inter assustou-nos ao falar de milhares de mortos no Huambo a serem comidos pelos cães’ (p.160). Mas estava reservado para o dia 13 de janeiro um dos momentos mais dramáticos, felizmente como final feliz: ‘aconteceu um duplo milagre. Os aviões lançaram duas bombas para nós e nenhuma explodiu. Nós, bem perto e no chão aguardamos as explosões e as duas enormes ‘botijas’ ainda cá estão para quem as quiser ver…e levar!’ (p.161). Outro ‘milagre’ aconteceria ao fim da tarde do dia 25 de fevereiro: ‘um obus entrou pelo muro da ala direita do Seminário, rebentou o gerador elétrico e espalhou estilhaços por toda a casa. Por milagre, todos estávamos longe deste local que era o nosso ‘bunker’ diurno por nos parecer ser o lugar mais seguro da casa!’ (p.162).

Os combates dentro da cidade terminaram a 6 de março, com a UNITA a expulsar o MPLA da cidade. Cercados, bombardeados pela aviação e submetidos a um regime militar duro, vivemos tempos de muita fome, desconfiança e insegurança, imagens de marca de todos os ambientes de guerra civil. Permaneci no Huambo ainda mais ano e meio. Refazer a vida naquele contexto, pode apresentar algumas semelhanças ao que vai ser o ressurgir de muitas vidas após a razia feita pelo covid.

Neste tempo pascal, torna-se urgente olhar com solidariedade fraterna para os mais frágeis. Têm sido constantes os gritos de quem trabalha com pessoas sem abrigo ou com famílias cujo pão dependia de pequenos negócios ou biscatos. Temos que ser irmãos. Ou, como escreveu nestes dias Yuval Harari, ‘a cooperação é o verdadeiro antídoto à epidemia’. No fim, para salvar, surge sempre o mesmo grande valor: o Amor! E, por mais voltas que tentemos dar, não encontraremos nenhuma alternativa.

Oiça

Tony Neves, em Roma

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14 abril 2020, 13:20