Dom Edson Oriolo Dom Edson Oriolo 

O sacerdócio na sociedade do espetáculo

O que significa a sociedade do espetáculo? Como viver o sacerdócio na sociedade do espetáculo? O que significa ser homem de Deus nessa sociedade? O artigo de Dom Edson Oriolo.

Dom Edson Oriolo - Bispo da Igreja Particular de Leopoldina, MG

Sacerdócio, sacerdote, essência do sacerdócio ministerial e homem do sagrado são temas preciosos, que venho aprofundando com maior intensidade, principalmente, depois que fui chamado ao episcopado. A preocupação em aprofundar esses temas é causada por observar os incontáveis cenários que se apresentam e pelos desafios para exercer com ardor o episcopado, isto é, a plenitude do sacerdócio.

Tenho plena certeza de que, exercer o episcopado numa sociedade do espetáculo é um enorme desafio. Essa realidade está ganhando espaço nesse tempo, mas nos ajudará a encontrar razões e solidificará os propósitos que assumimos no dia da ordenação sacerdotal. Papa Bento, na homilia da Quinta-feira Santa- 2006, nos chamou atenção: “O mundo tem necessidade de Deus – não de um deus qualquer, mas do Deus de Jesus Cristo, do Deus que se fez carne e sangue, que nos amou a ponto de morrer por nós, que ressuscitou e criou em si mesmo um espaço para o homem. Esta é a nossa vocação sacerdotal: somente deste modo o nosso agir presbiteral pode dar fruto (...) Ser sacerdote significa tornar-se amigo de Jesus Cristo, e isto cada vez mais com toda a nossa existência”.

Sociedade do Espetáculo

O que significa a sociedade do espetáculo? Como viver o sacerdócio na sociedade do espetáculo? O que significa ser homem de Deus nessa sociedade?

O criador do conceito “sociedade do espetáculo” foi o francês Guy Debard, que definiu o espetáculo como o conjunto das relações mediadas pelas imagens. A palavra “espetáculo”, na raiz, está ligada a espectador, ou seja, “aquele que assiste”. Não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.

Na “sociedade do espetáculo”, a aparência torna-se algo importante, bem como a produção de imagens e a valorização da dimensão visual da comunicação como instrumento de exercício do poder e de dominação social. No espetáculo, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” (cf. Debard, A Sociedade do Espetáculo, p 13-25)

A imagem, obviamente, é algo para ser visto. Mas nem toda imagem está inserida na lógica do espetáculo. Uma imagem natural - lago, cachorros, montanhas ao fundo, campo - é apenas uma paisagem, ou uma imagem natural. No entanto, se o espaço for loteado para a venda e a paisagem utilizada como sedução para atrair compradores, o cenário se converte em mercadoria e ganha valor de imagem.

Na sociedade do espetáculo, quanto mais a pessoa se apresenta por meio de determinada estética (roupas, maquiagem, gestos ensaiados e palavras de ordem), mais se rende à lógica do espetáculo, à medida que expressa sua rebeldia visualmente. O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”.

A vida é cada vez mais moldada pelo espetáculo: o teatro, a moda, a arquitetura, a gastronomia, o sexo, os jogos, a música, a televisão, o filme, os esportes, as celebridades, a economia. É a espetacularização da realidade, a dramatização da vida e, infelizmente, a compreensão do sacerdócio está entrando nessa onda. Acredito que, muitas vezes, pela ignorância em relação à falta de compreensão e de entendimento sobre a dimensão sacramental do sacerdócio.

Espetacularização do ser sacerdote

Papa Bento nos ensinou que o “ser sacerdote, na Igreja, significa entrar nesta autodoação de Cristo, mediante o sacramento da ordem, e entrar totalmente nela. Jesus doou a vida por todos, mas de modo particular consagrou-se por aqueles que o Pai já lhe tinha confiado, para que fossem consagrados na verdade, isto é, nele, e pudessem falar e agir em seu nome, representá-lo, prolongar os seus gestos salvíficos: partir o pão da vida e perdoar os pecados” (Homilia, 3 de maio de 2009).

No entanto, devido à espetacularização da realidade, alguns valores em relação ao sacerdote e sua missão estão ficando de lado, como por exemplo: a comunhão, a obediência, o sacrifício, a partilha, a corresponsabilidade, a diocesaneidade, o serviço, o grau hierárquico, o mistério, o sagrado, a entrega, a doação, a caridade, a fraternidade, a solidariedade, etc. O sacerdócio não significa status, mas um dom recebido que estimula em fazer o mesmo que Jesus fez: “servir”.

Nesta sociedade do espetáculo, o sacerdote vem perdendo a sua vida interior. O mais importante é fazer shows nas celebrações litúrgicas ou paralitúrgicas e ser show man. O verdadeiro sentido da comunhão com Cristo está ficando em segundo plano. Bento XVI adverte: “(...) o nosso ser sacerdote nada mais é que um novo e radical modo de unificação com Cristo. Esta foi-nos substancialmente concedida para sempre no sacramento. Mas, este novo timbre do ser pode tornar-se para nós um juízo de condenação, se a nossa vida não se desenvolver entrando na verdade do sacramento” (idem).

O saudoso São João Paulo II escreveu que: “o sacerdote não deve ter qualquer receio de estar ‘fora do tempo’, porque o ‘hoje’ humano de cada sacerdote está inserido no ‘hoje’ de Cristo redentor. A maior tarefa de cada sacerdote em todo o tempo é o conhecer, o dia a dia, o seu ‘hoje’ sacerdotal no ‘hoje’ de Cristo, naquele ‘hoje’ de que fala a carta aos Hebreus. Este ‘hoje’ de Cristo está inserido em toda a história – no passado e no futuro do mundo, de cada homem e de cada sacerdote. Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; Ele o será para a eternidade (cf. Hb 13,8). Se estamos, portanto, inseridos com o nosso ‘hoje’ humano e sacerdotal no ‘hoje’ de Jesus Cristo, não existe o perigo de virmos a ser de ‘ontem’, isto é, desatualizados. Cristo é a medida de todos os tempos” (João Paulo II, PP. Dom e mistério, p. 97-98).

Nesse “hoje de Deus” e nessa sociedade do espetáculo, o sacerdote muitas vezes vem perdendo o significado da vida interior. Muitas vezes, perde o contato com Cristo na Eucaristia e em outros exercícios de piedade. Perde o encanto de estar numa autêntica intimidade com Cristo. O sacerdote deve ser o eterno amigo de Cristo. É muito triste ver um sacerdote que, aos poucos, está perdendo o encantamento em viver e agir in persona Christi.

No entanto, sabendo da força que a realidade do espetáculo nos impõe, somos chamados à compreensão do nosso sacerdócio para sermos e agirmos com maestria nesse mundo do espetáculo. A sociedade do espetáculo nos condiciona a perder o verdadeiro sentido da dimensão ontológica e funcional do sacerdócio.

Ser sacerdote: a configuração com Cristo

Pelo sacramento da ordem, os presbíteros configuram-se a Cristo sacerdote (...) e por razão especial têm obrigação de adquirir tal perfeição (...) instrumentos vivos de Cristo, eterno sacerdote (...). Como, pois, todo sacerdote faz a seu modo as vezes da pessoa de Cristo, é também enriquecido com uma graça particular para, servindo ao povo a ele confiado e a todo o povo de Deus, possa alcançar mais aptamente a perfeição daquele de quem faz as vezes, e para que a santidade daquele que por nós se fez pontífice ‘santo, sem mancha, separado dos pecadores’ (Hb 7,26) cure a fraqueza da carne humana” (Presbyterorum Ordinis, 12).

“O sacerdote deve ser um homem que conhece Jesus a partir de dentro, que se encontrou com ele e aprendeu a amá-lo. Por isso, o sacerdote deve ser, antes de tudo, um homem de oração, um homem realmente ‘espiritual’. Sem este forte conteúdo espiritual ele não é capaz de perseverar em seu ministério com o passar do tempo. Deve aprender também com Cristo a não construir uma vida interessante e agradável para si, mas trabalhar para Cristo, centro único de toda pastoral” (Ratzinger, J. Compreender a Igreja hoje, p.80).

Bento XVI sempre se preocupou com a identidade do sacerdócio. O sinal mais evidente do seu desejo de reorientar a identidade do presbitério, mediante o significado da vida ministerial e da formação eclesiástica, foi a indicação do ano sacerdotal, que desejou dedicar à figura de João Batista Maria Vianney, mais conhecido como o Santo Cura d’Ars, na circunstância do 150º aniversário de sua morte. Esse homem representava o modelo do “apaixonado por Cristo” e o verdadeiro segredo de seu êxito pastoral era “o amor que nutria pelo mistério eucarístico anunciado, celebrado e vivido, que se tornou amor pelo rebanho de Cristo, os cristãos, e por todas as pessoas que procuram a Deus” (Ganswein, Georg. Nada Além da Verdade, p.133).

O sacerdote, na dinâmica ontológica-funcional

O Papa Bento sempre teve em mente que a visão comum no mundo moderno tem dificuldade em relação ao sagrado, enquanto a funcionalidade se torna a única categoria decisiva, de sorte que a concepção católica do sacerdócio poderia correr o risco de perder sua consideração natural, às vezes inclusive no interior da consciência eclesial.

“Não raro, quer nos ambientes teológicos, quer também na prática pastoral concreta e de formação do clero, confrontam-se e, por vezes, opõem-se dois conceitos diferentes de sacerdócio. Por um lado, uma concepção social-funcional que define a essência do sacerdócio com o conceito de serviço: o serviço à comunidade, no cumprimento de uma função... Por outro lado, existe a concepção sacramental-ontológica que, naturalmente, não nega a índole de serviço do sacerdócio mas, ao contrário, vê-se ancorada no ser do ministro e considera que este ser é determinado por um dom concebido pelo Senhor através da mediação da Igreja, cujo nome é sacramento” (Audiência geral de 24 de junho de 2009).

Destarte, vem o questionamento: Como conciliar as duas perspectivas atuais: a ontológica-sacramental, vinculada ao primado da Eucaristia (binômio “sacerdócio-sacrifício”), e a segunda, a posição sociofuncional, que corresponde ao primado da Palavra e do serviço do anúncio?

Assim, a grande preocupação do papa Bento foi reiterar que “o sacerdote é servo de Cristo, no sentido de que a sua existência, configurada com Cristo ontologicamente, assume um caráter essencialmente de relação: ele está em Cristo, por Cristo e com Cristo a serviço dos homens. Precisamente porque pertence a Cristo, o presbítero está radicalmente a serviço dos homens: é ministro da sua salvação, da sua felicidade, da sua autêntica libertação, amadurecendo nesta progressiva assunção da vontade de Cristo, na oração, no ‘estar coração com coração’, com ele. Assim, esta é a condição imprescindível de todo o anúncio, que requer a participação na oferenda sacramental da Eucaristia e a obediência dócil à Igreja”. (Ganswein, Georg, Nada além da verdade, p.134).

O papa Bento continua especificando que “o sacerdote não é simplesmente o detentor de um ofício, como aqueles de que toda a sociedade necessita, para que possam cumprir nela certas funções. Ao contrário, o sacerdote faz o que nenhum ser humano pode fazer por si mesmo: pronunciar em nome de Cristo a palavra de absolvição de nossos pecados, transformando assim, a partir de Deus, a situação de nossa vida. Pronuncia sobre as oferendas do pão e do vinho as palavras de graças de Cristo, que são palavras de transubstanciação, palavras que tornam presente ele mesmo, o Ressuscitado, seu corpo e seu sangue, transformando assim os elementos do mundo, são palavras que abrem o mundo a Deus e o unem a ele. Portanto, o sacerdócio não é um simples ‘oficio’, mas sim um sacramento: Deus se vale de um homem com suas limitações para estar, através dele, presente entre os homens e atuar em seu favor” (Idem, p.134-135).

Bento XVI alerta que, no mundo do espetáculo, o sagrado é cada vez menos compreendido e o funcional exaltado como única categoria determinante. Ratzinger sempre ensinou que aquilo que é essencial do sacerdócio é um poder do alto e uma missão divina. O sacerdócio é algo estabelecido do alto, não de baixo, de uma eleição popular. Tem sua raiz em Cristo e apontou o risco de se reduzir o sacerdócio a uma mera função ou serviço humano.  

A doutrina católica em relação ao sacerdócio põe ênfase, claramente, no aspecto ontológico do ser sacerdotal, e com isso sublinha o caráter de serviço, isto é, um serviço à comunidade, mas trata-se de uma promoção ao serviço de Cristo Mestre, sacerdote e Rei; é a participação de seu ministério, pelo que a Igreja é edificada como povo de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito Santo. O caráter ontológico está intimamente relacionado ao caráter funcional do serviço. Ambos não podem se desvincular no exercício do ministério ordenado.

As três dimensões sacerdotais

Papa Francisco, no dia 26 de março de 2014, na Praça de São Pedro, falou de três aspectos da missão do sacerdote. Nesses três aspectos, revela uma missão pastoral, teológica do mesmo em relação ao povo de Deus na sua constituição histórica cultural. Primeiro ele é colocado como “chefe da comunidade” na dinâmica e autoridade do serviço. “Filho do homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgaste por muitos” (Mt 20,25-28; Mc 10,42-45). O sacerdote é “um apaixonado pela Igreja”. Em virtude do sacramento da ordem, o sacerdote dedica-se inteiramente à própria comunidade, amando-a com todo o seu coração: é a sua família. E o terceiro “reavive sempre o seu dom”. O ministério do sacerdote com a oração, com a escuta da Palavra de Deus e com celebração cotidiana da Eucaristia, mas também com a frequência no sacramento da penitência, acaba-se inevitavelmente por perder de vista o sentido autêntico do próprio serviço e a alegria que deriva de uma profunda comunhão com Jesus.

O sacerdote, quando reavive o dom do seu ministério, torna-se um apaixonado pela Igreja de Jesus Cristo e vivencia a dinâmica do serviço e da autoridade na vida da comunidade que lhe foi confiada. Mergulha profundamente na missão e sai para ajudar e dinamizar a comunidade. É capaz de sair da zona de conforto onde se encontra e visitar as pessoas onde elas se encontram, sendo sinal de esperança.

Conclusão

Assim sendo, através das suas homilias, Papa Francisco, nas celebrações das Santas Missas Crismais de 2014 a 2017, nos orientou que o sacerdote é “servo de Cristo”. Sua existência, ontologicamente configurada com Jesus, adquire uma índole essencialmente relacional: ele vive por Cristo, com Cristo e em Cristo, a serviço dos homens. A identidade do sacerdote e a missão são uma realidade unitária e indivisível. Nesse sentido, o sacerdote para uma “Igreja em Saída” é aquele em cujo ministério não há separação e, menos ainda, antagonismo entre ser e fazer, mas justaposição. A eclesiologia e, por conseguinte, o sacerdócio, no pensamento de Francisco, se caracteriza no binômio “identidade-missão”.

Somente vivendo intensamente este binômio, assumindo o viver em Cristo e servindo com generosidade e alegria ao povo de Deus, o sacerdócio poderá enfrentar os desafios da sociedade do espetáculo. Será, então, sinal do Cristo servidor!

Bibliografia

Concílio Vaticano II, Decreto sobre o Ministério e a Vida Sacerdotal Presbyterorum Ordinis

Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo, 14 reimpressão, Rio de Janeiro, Contraponto, 2016

Ganswein, Georg. Nada Além da Verdade, Campinas: Ecclesiae, 2023

Oriolo, dom Edson, Ser Sacerdote, São Paulo: Paulus, 2019

Paulo II, João. Dom e Mistério, São Paulo: Paulinas, 1998

Ratzinger, J. Compreender a Igreja hoje, 4 edição, São Paulo: Editora Vozes, 2014

Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui

27 março 2024, 16:29