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Cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral Cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral  (Yurko Hanchuk)

Czerny: a Igreja rejeita toda palavra ou ação que não reconheça a dignidade humana

O prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral comenta a nota conjunta sobre a "Doutrina da Descoberta": "Não é uma curiosidade histórica, mas o reconhecimento de que essas atitudes, esses passos infelizes do passado continuam tendo efeito ainda hoje".

Salvatore Cernuzio – Vatican News

Uma "Nota formal", fruto de um processo difícil no âmbito do diálogo e da escuta solicitados pelo Papa, que não quer negar os "passos infelizes" do passado, mas reconhecê-los e situá-los em seu contexto histórico e também em seus efeitos hoje. Assim, o prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, cardeal Michael Czerny, resume a Declaração Conjunta sobre a "Doutrina da Descoberta" (Doutrina do Descobrimento) publicada nesta quinta-feira, 30 de março. "A Santa Sé, os bispos canadenses e estadunidenses realmente querem esta Nota, que lamenta o que aconteceu, ajuda a cura e a reconciliação com os povos indígenas", disse Czerny na entrevista à mídia vaticana.

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Eminência, por que a Santa Sé decidiu publicar esta Nota conjunta sobre a "Doutrina da Descoberta"?

O primeiro ponto, o fundamental, é que os povos indígenas pediram. Pediram para repudiar a chamada “Doutrina da Descoberta” (Doutrina do Descobrimento). A Nota denuncia e rejeita esta ideia do Descobrimento e explica como as Bulas ou Decretos de 1400 não expressam de forma alguma a fé, a doutrina ou o magistério da Igreja, que rejeita toda palavra ou ação que não reconheça a dignidade humana. É importante reconhecer que o pedido foi e é um esclarecimento formal e, portanto, a Nota tem um tom formal. Se alguém quiser ouvir a palavra da Igreja em tom pastoral, não deve procurá-la na Nota, mas deve ouvir as homilias e os discursos de São João Paulo II (1984) e do Papa Francisco (2022) quando eles visitaram o Canadá. A mensagem é a mesma, mas o registro é diferente. Por exemplo, em julho de 2015, na Bolívia, eu estava lá, graças a Deus, e o Papa Francisco, repetindo João Paulo II, pediu à Igreja que “se ajoelhasse diante de Deus e implorasse perdão pelos pecados passados ​​e presentes de seus filhos e de suas filhas". Os muitos pecados graves cometidos contra os povos indígenas da América em nome de Deus durante a conquista.

Qual era o sentido e o alcance das três bulas papais do século XV, com as quais o Papa permitia que os colonizadores se apropriassem das terras e bens dos indígenas? Por que esses documentos são considerados por alguns estudiosos como a base da "Doutrina da Descoberta"?

Primeiramente, devemos pensar que uma Bula é uma decisão ou decreto com um sigilo, mas não é magistério, não é doutrina, não é ensinamento. É algo pontual que um Papa faz como chefe de Estado em relação a outros chefes de Estado. No final do século XV, o Papa quis colocar ordem e evitar a guerra entre a Coroa espanhola e a Coroa portuguesa na ânsia de colonizar o chamado Novo Mundo. Não se tratava tanto de abrir um novo caminho, mas de controlar o que acontecia e o que era inevitável. O Papa usou seus instrumentos no esforço para colocar ordem. Ao fazer isso, ele usou linguagem e expressões que são totalmente inaceitáveis ​​para nós hoje, mas na época era a maneira como as pessoas falavam. O Papa queria manter a paz.

Reconhecemos esta história como triste, mas também devemos sublinhar que o que nos impele mais do que um esclarecimento histórico é reconhecer e enfrentar a realidade de hoje. Em outras palavras, não basta rejeitar esta triste história, mas é preciso reconhecer, proteger e promover a dignidade de cada pessoa humana e, portanto, os direitos dos povos indígenas. Com o total apoio do Santo Padre e do Vaticano, as Igrejas no Canadá e nos Estados Unidos querem se reconciliar com os povos indígenas e ajudar a facilitar seu desenvolvimento com o maior respeito por sua identidade, língua, cultura e tradições.

As bulas papais falam de dominação, submissão, subtração de terras e escravidão. Como é possível seguir adiante com uma herança como esse? Na sua opinião, a resposta atual é adequada?

Quando temos uma herança de linguagem de dominação, submissão, subtração de terras e escravidão, a primeira coisa a fazer é dizer: sim, isso já foi dito. Não esconder e não negar. A segunda coisa - que é o precioso trabalho dos historiadores - é enquadrar essas expressões em seu contexto. Se você pegar essas palavras e ver como naquela época outros documentos e decretos da Igreja falavam de mulheres, crianças, judeus ou muçulmanos, infelizmente você diz: mas esse vocabulário estava em toda parte! Uma série de conceitos antropológicos totalmente inaceitáveis ​​hoje, à luz do Evangelho. Mas assim foi... Nada a fazer senão reconhecer tudo isso. Fazemos tudo isso não por curiosidade histórica, mas para reconhecer que essas atitudes, esses passos infelizes continuam surtindo efeito hoje. Todos os envolvidos - a geração atual de indígenas e a geração atual de outros habitantes - precisam reconhecer o que foi dito e por quê, e então ver como as coisas se desenvolveram; talvez o mais importante seja reconhecer os efeitos da colonização ainda hoje e fazer uma causa comum para superá-los o mais rápido possível: respeitar a identidade, a língua, as culturas e os direitos dos povos indígenas, diz a Nota Conjunta, e trabalhar juntos para melhorar as condições de vida e promover o desenvolvimento. Não há um único passo que possa eliminar a herança do colonialismo, e isso inclui as bulas papais associadas à Doutrina da Descoberta. Os bispos canadenses, os católicos, os fiéis e os cidadãos devem trabalhar todos os dias, não apenas para condenar as falsas ideias que infectaram tantas atitudes no Canadá, mas também para caminhar em solidariedade com o objetivo de cura e reconciliação. Devemos, portanto, nos mostrar abertos ao enfrentamento e à escuta para caminharmos juntos rumo a uma resposta. Este é o fruto mais precioso de um processo que não foi fácil: chegar a uma nota formal que entra em diálogo muito importante com a atitude de escuta.

Desde quando a Igreja Católica afirma os direitos invioláveis ​​dos povos indígenas?

É uma pergunta complexa porque a evolução do vocabulário e do ensino foi lenta e difundida. Uma resposta particular ocorreu em 1537, quando o Papa Paulo III escreveu a Bula Sublimis Deus de 1537, na qual afirmava: "Definimos e declaramos que os chamados índios e todos os outros povos não são de forma alguma privados de sua liberdade ou da posse de seus bens". Isso contradiz totalmente o que foi dito cinquenta anos antes e indica a fluidez da história. Importante o esforço da Nota publicada hoje e todos os esforços científicos de esclarecer esta história e explicar cada afirmação em seu contexto e - esta é a parte mais existencial - em seu efeito e impacto para hoje.

Como a viagem do Papa Francisco ao Canadá em julho de 2022 influiu nessas questões?

A viagem do Papa Francisco ao Canadá, da qual tive a honra de participar, colocou em pauta as questões mencionadas na Nota. De fato, disse o Papa: estamos prontos e queremos nos confrontar, queremos aceitar e superar todos os pecados do passado. Isso é mais corajoso do que apenas dizer 'vamos fazer um esclarecimento histórico'. É reconhecer que esse vocabulário de dominação continua fazendo efeito hoje. É a realidade. A segunda coisa é que o Santo Padre nos mostrou o caminho para enfrentar as questões espinhosas do passado: escutando. Não começar com discursos, mas com a escuta. A Nota de hoje encontra-se no contexto da escuta e do diálogo. Está sendo publicada porque os povos indígenas do Canadá a pediram. Nem todos, mas há vários anos há um apelo para um esclarecimento formal do assunto.

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30 março 2023, 15:32