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Viagem Apostólica do Papa João Paulo II à África (4 de junho - 10 de junho de 1992 - Angola, São Tomé e Príncipe) Viagem Apostólica do Papa João Paulo II à África (4 de junho - 10 de junho de 1992 - Angola, São Tomé e Príncipe) 

Buscar a justiça, atravessar o conflito, custodiar a dignidade: o caminho da doutrina social

"A doutrina social da Igreja é sábia: não pretende condenar rótulos ou bandeiras, mas ir à raiz das coisas e nos convidar a uma mudança radical, que envolve colocar o nosso próprio coração à disposição de uma transformação."

Vatican News

"Foi movido pela consciência da sua missão de sucessor de Pedro que Leão XIII se propôs falar, e a mesma consciência anima hoje o seu sucessor. Como ele, e os Pontífices anteriores e posteriores, me inspiro na imagem evangélica do «escriba instruído nas coisas do Reino dos Céus», do qual o Senhor diz que «é semelhante a um pai de família, que do seu tesouro tira coisas novas e antigas» (Mt 13, 52). O tesouro é a grande corrente da Tradição da Igreja, que contém as «coisas antigas», desde sempre recebidas e transmitidas, e que permite ler as «coisas novas», no meio das quais transcorre a vida da Igreja e do mundo".

“Entre essas coisas que, incorporando-se na Tradição, se tornam antigas e oferecem ocasião e material para o seu enriquecimento e para uma maior valorização da vida de fé, conta-se também a actividade fecunda de milhões e milhões de homens que, estimulados pelo ensinamento do Magistério social, procuraram inspirar-se nele para o próprio compromisso no mundo. Actuando individualmente ou inseridos em grupos, associações e organizações, constituíram como que um grande movimento empenhado na defesa da pessoa humana e na tutela da sua dignidade, o que tem contribuído para construir, nas diversas vicissitudes da história, uma sociedade mais justa, ou pelo menos a colocar barreiras e limites à injustiça. (João Paulo II - Centesimus annus)”

 

Na Encíclica Centesimus annus - promulgada por ocasião do centenário da publicação da Rerum Novarum - o Papa João Paulo II coloca em evidência a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII, "que pertencem ao patrimônio doutrinal da Igreja, e, como tais, empenham a autoridade do seu Magistério". Mas a solicitude pastoral - acresenta o Pontífice polonês - "levou-me também a propor a análise de alguns acontecimentos da história recente". 

Neste ano de 2021, a Centesimus annus completou 30 anos de sua publicação, motivo pelo qual convidamos o jovem teólogo Felipe Sérgio Koller* - co-fundador da Oficina de Nazaré (@oficina.de.nazare no Instagram) - a propor algumas reflexões sobre o pensamento social de São João Paulo II, a começar precisamente pela encíclica publicada em 1° de maio do ano de 1991. Anteriormente, Felipe deu destaque para a concepção cristã de pessoa na Doutrina Social. Hoje o também professor nos fala sobre a visão da Doutrina Social sobre a luta pela justiça social:

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"Na primeira parte desta série, vimos como cada aspecto da doutrina social da Igreja se fundamenta na concepção cristã de pessoa. A pessoa vive a partir da relação; se compreende na comunhão com o outro. Quando não se dá primazia à pessoa, cai-se ou no individualismo, que entende o sujeito fora da relação, contra o outro, rivalizando com o outro; ou no coletivismo, que é capaz de esmagar o sujeito em favor de um todo idealizado. Só a partir da pessoa, a partir da comunhão, a partir da liberdade, se pode construir uma civilização do amor, para usar uma expressão de São Paulo VI. Sem atenção à pessoa, à relação, logo se escorrega para a violência.

Esse é um tema ao qual São João Paulo II também dá atenção na Encíclica Centesimus annus, que tem inspirado nossas reflexões. Quando pensamos naquilo que desejamos para a sociedade, não são apenas os objetivos que são importantes, mas também os meios de ação, o modo de alcançar esses objetivos. Talvez mais do que nos objetivos, nos ideais, é no modo que propomos alcançá-los que está o crivo da nossa sensibilidade à pessoa, da nossa acolhida do outro, da nossa abertura à comunhão.

“Além disso, o homem, criado para a liberdade, leva em si a ferida do pecado original, que continuamente o atrai para o mal e o torna necessitado de redenção. Esta doutrina é não só parte integrante da Revelação cristã, mas tem também um grande valor hermenêutico, enquanto ajuda a compreender a realidade humana. O homem tende para o bem, mas é igualmente capaz do mal; pode transcender o seu interesse imediato, e contudo permanecer ligado a ele. A ordem social será tanto mais sólida, quanto mais tiver em conta este facto e não contrapuser o interesse pessoal ao da sociedade no seu todo, mas procurar modos para a sua coordenação frutuosa. Com efeito, onde o interesse individual é violentamente suprimido, acaba substituído por um pesado sistema de controle burocrático, que esteriliza as fontes da iniciativa e criatividade. Quando os homens julgam possuir o segredo de uma organização social perfeita que torne o mal impossível, consideram também poder usar todos os meios, inclusive a violência e a mentira, para a realizar. A política torna-se então uma «religião secular», que se ilude de poder construir o Paraíso neste mundo. (João Paulo II)”

É dentro desse quadro que a encíclica de João Paulo II volta a apontar os perigos da luta de classes como meio de ação próprio do socialismo. Mas é interessante: ele faz questão de dizer que “não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social”. A Igreja reconhece que existem tensões entre os grupos sociais. A doutrina social compreende que essas tensões são inevitáveis — e não só: elas têm um papel positivo dentro do quadro da luta pela justiça social, e por isso o cristão é frequentemente chamado a tomar posição nesses conflitos, “decidida e coerentemente”, como diz João Paulo II. 

É um tema que o Papa havia desenvolvido em outra Encíclica, chamada Laborem exercens e publicada em 1981, dez anos antes da Centesimus annus. Ali (n. 20) São João Paulo II dizia que a luta pela justiça social não é uma luta contra os outros: ela pode envolver a franca oposição a outros grupos e a outros interesses, mas sempre por fidelidade ao bem que é a justiça social, e não pelo fomento do ódio, da agressividade, do impulso de eliminação do outro.

Ou seja, reconhece-se a tensão, reconhece-se até mesmo o valor dessa tensão, o papel positivo do conflito, sempre à luz da busca pela justiça social. Não se pode parar a luta pela justiça social por receio das tensões. Aí entra, porém, um segundo elemento: a arte de lidar com essas tensões, ou melhor, a arte de lidar comigo mesmo diante das tensões, de custodiar o meu coração para que eu não alimente a violência, mesmo quando eu for vítima dela. É a arte de agir não por ricochete, mas com liberdade interior e um amor criativo. Há uma frase do diário de Etty Hillesum, uma mística judia morta no holocausto, que sintetiza bem essa preocupação da doutrina social católica: “Esta barbárie que é a nossa, deveríamos rejeitá-la interiormente, não temos o direito de cultivar em nós esse ódio, porque não é dessa forma que o mundo supera sequer um polegar da lama em que se vê envolvido”.

Na Centesimus annus (n. 14), São João Paulo II deixa bem claro: “O que se condena na luta de classes é principalmente a ideia de um conflito que não é limitado por considerações de caráter ético ou jurídico, que se recusa a respeitar a dignidade da pessoa no outro (e, por consequência, em si próprio), que exclui por isso um entendimento razoável, e visa não já a formulação do bem geral da sociedade inteira, mas sim o interesse de uma parte que se substitui ao bem comum e quer destruir o que se lhe opõe”. A recusa da dignidade do outro: aí é que soa o alarme. É aí que se desmascara uma versão falsificada de bem comum que já não é bem comum, mas o interesse meu e dos meus. 

“O que se condena na luta de classes é principalmente a ideia de um conflito que não é limitado por considerações de carácter ético ou jurídico, que se recusa a respeitar a dignidade da pessoa no outro (e, por consequência, em si próprio), que exclui por isso um entendimento razoável, e visa não já a formulação do bem geral da sociedade inteira, mas sim o interesse de uma parte que se substitui ao bem comum e quer destruir o que se lhe opõe. Trata-se, numa palavra, da representação — no terreno do confronto interno entre os grupos sociais — da doutrina da «guerra total», que o militarismo e o imperialismo daquela época impunham no âmbito das relações internacionais. Tal doutrina substituía a procura do justo equilíbrio entre os interesses das diversas Nações, pela prevalência absoluta da posição da própria parte, mediante a destruição da resistência da parte contrária, destruição realizada com todos os meios, sem excluir o uso da mentira, o terror contra os civis, as armas de extermínio, que naqueles anos começavam a ser projetadas. Luta de classes em sentido marxista e militarismo têm, portanto, a mesma raiz: o ateísmo e o desprezo da pessoa humana, que fazem prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito. (João Paulo II)”

E é justamente com esses critérios que podemos manter os olhos abertos para reconhecer esse mal não apenas na luta de classes de caráter socialista, mas em qualquer outro contexto que se alimente dessas mesmas raízes: o ataque à dignidade humana no outro, o apetite pela violência, a marginalização ou eliminação daqueles que não são do meu grupo. João Paulo II reconhece que também o modelo imperialista, no âmbito das relações internacionais, é alimentado pelas mesmas motivações. “Luta de classes em sentido marxista e militarismo têm, portanto, a mesma raiz: o ateísmo e o desprezo da pessoa humana, que fazem prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito”, escreveu o Papa (n. 14). 

É muito fácil cair na tentação de, ao nos opor a algo que nos parece errado, simplesmente espelharmos o mesmo erro. Desse modo, na superfície parece que nos opomos ao erro, mas numa camada mais profunda nós, na verdade, replicamos os mesmos mecanismos desse erro, construímos sobre os mesmos fundamentos. A doutrina social da Igreja é sábia: não pretende condenar rótulos ou bandeiras, mas ir à raiz das coisas e nos convidar a uma mudança radical, que envolve colocar o nosso próprio coração à disposição de uma transformação."

*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e Doutorando em Teologia pela PUC-PR, professor dos cursos de especialização da Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e da Católica de Santa Catarina, em Joinville.

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11 dezembro 2021, 07:19