“Tenho que parabenizar o Papa Francisco por ter escrito esse documento com tanta inspiração, com tanto discernimento, e com tanta inspiração do Espírito Santo”,  diz padre Paulo Dalla Dea “Tenho que parabenizar o Papa Francisco por ter escrito esse documento com tanta inspiração, com tanto discernimento, e com tanta inspiração do Espírito Santo”, diz padre Paulo Dalla Dea 

Padre Dalla Dea: a Igreja pode aprender da Amazônia. É uma nova era na Igreja

O documento dá liberdade para vários processos, tanto simultâneos como diferentes, lançando as bases para um trabalho evangelizador que não é um trabalho em que as pessoas são objetivos da evangelização, são objetos da evangelização, mas ele dá a possibilidade da Igreja aprender com essa cultura, como já aprendemos com os gregos, com os latinos, com os eslavos, com os com os povos europeus, a Igreja pode aprender da Amazônia. Isso é uma nova era na Igreja, avalia o sacerdote Padre Paulo Dalla Dea, ao analisar a Exortação Apostólica "Querida Amazônia" do Papa Francisco.

Cidade do Vaticano

“O processo que o Papa Francisco está fazendo neste documento é um processo que começa agora e que vai se enraizar dentro da Igreja. Essa é a grande esperança minha, mas do Papa Francisco também, uma esperança de algo novo que está nascendo”. Esta é a avaliação do Padre Paulo Dalla Dea*, sacerdote fidei donum no Santuário do Cura D’Ars, França, sobre a Exortação Pós-Sinodal "Querida Amazônia", do Papa Francisco, publicada na última quarta-feira, 12 de fevereiro.

“Tenho que parabenizar o Papa Francisco por ter escrito esse documento com tanta inspiração, com tanto discernimento, e com tanta inspiração do Espírito Santo”, disse ao Vatican News o sacerdote, ao destacar alguns pontos do documento.

Chamar a atenção para a Amazônia

Ouça e compartilhe!

“Eu acho que a questão principal aqui é que é uma Exortação Apostólica que coloca em primeiro lugar uma questão que ninguém estava vendo, que era questão da Amazônia, uma região pobre, isolada, há 500 anos com problema de evangelização e agora com problemas não só de evangelização, mas exploração do homem e da natureza e de tudo. Então o Papa Francisco coloca um foco muito grande em um lugar onde pouca gente estava colocando. E ele chega a dizer, isso é interessante, que o objetivo dele é colocar a Amazônia em destaque. Se esse era o objetivo, ele conseguiu. Mas vamos ver o que ele fala sobre a Amazônia, que destaque ele dá a essa região do mundo.

Ensinamento em linha com a doutrina mais tradicional da Igreja

 

A primeira coisa que eu queria destacar é que a Exortação Apostólica “Querida Amazônia” está na mesma linha da Laudato Si. No número 8, primeiro capítulo, quando ele fala que é necessário ouvir tanto  o clamor da terra como o clamor dos Pobres. Então ele vai na mesma linha da Laudato si, onde ele protege o meio ambiente para proteger as pessoas e protege as pessoas mais desprotegidas, que são os pobres.  Nesse sentido a Encíclica vai na mesma linha, criticando xenofobia, criticando exploração sexual, criticando o tráfico de pessoas - que acontece na Amazônia - criticando toda a exploração desenfreada do capitalismo na Amazônia. Inclusive no número 12 já citando Bento XVI, indo na mesma linha do discurso de Bento XVI, no discurso que ele fez aos jovens de São Paulo em 2007, onde Bento XVI fala da devastação ambiental da Amazônia. E fala das ameaças à dignidade humana, das suas populações. Quer dizer, é um ensinamento bem em linha com a doutrina mais tradicional da Igreja.

Ele vai falar de Bento XVI e aqui tem uma coisa bem interessante. Ele cita Bento XVI, e São João Paulo II, várias vezes, é lógico, mas ele cita também o Ratzinger. Em um momento aqui nas notas de rodapé, ele cita uma entrevista do Ratzinger em 2005. Então ele cita dois momentos muito diferente da mesma pessoa: o Papa Bento XVI e o cardeal Ratzinger. Ele usa os dois momentos da mesma pessoa, o que é muito interessante e que é uma inovação.

As fontes e notas de rodapé

 

A fonte é uma questão bastante nova. As notas de rodapé que ele coloca, é lógico, o Papa Francisco cita o Sínodo dos Bispos, cita o documento final, cita várias outras contribuições que foram trazidas no Sínodo, mas ele cita algumas coisas que são bastante interessantes.

Além de citar Bento XVI e Ratzinger, ele cita também algumas pessoas que são um pouco novas nesse sentido. Tem uma nota em que ele cita Pedro Casaldáliga, que é um bispo que trabalhou na Amazônia, um bispo que já está aposentado, está com vários problemas de saúde, mas ele cita Pedro Casaldáliga, ele cita João Carlos Galeano, que é um poeta, ele cita Pablo Neruda, ele cita também Evaristo Eduardo de Miranda, que é um ecologista leigo católico, é também de certa forma teólogo, ele é da Arquidiocese de Campinas, eu o conheço, é um cara extremamente bom. E ele cita ainda Euclides da Cunha. São poetas, são coisas, que não nós estamos muito acostumados a ver nas Encíclicas papais. Então ele usa da literatura que é fora da Igreja, não só a literatura eclesial.

A Tradição como raiz

 

Também como fonte, além da poesia, além dessas fontes que estou dizendo, ele usa duas situações muito importantes da Patrística. Duas vezes ele cita Tomás de Aquino, que é um Santo do século XIII, um homem extremamente culto, um monge extremamente culto, tanto que as obras dele foram consideradas meio que oficiais na Igreja. Então ele cita São Tomás de Aquino quando ele vai trabalhar várias questões que são difíceis, disputadas e tal.

E aqui tem uma outra questão como fonte, que ele cita São Vicente de Lérins, que é do século quarto, e é considerado Padre da Igreja. E ele vai citar Vicente de Lérins para dizer justamente da Tradição mais autêntica da Igreja, que é a raiz de uma árvore. Ele trata a Tradição como raiz. E a raiz não dá para ser arrancada, senão a árvore perto de sustentação, mas perde também a vida. Então ele trata São Vicente de Lérins com como uma figura extremamente interessante e com uma imagem que é extremamente cara à Amazônia

Cultura em diálogo, aberta

 

Outra coisa a ser considerada, é que o Papa quando fala de cultura no número 37, ele fala de cultura do diálogo. Então ele fala de uma cultura que está em relacionamento com os outros, de uma cultura que não é parada, não é conservacionista, não é uma coisa  estanque. A cultura indígena, a cultura ribeirinha, mesmo a cultura ocidental, não é estanque, não pode não pode ficar presa como em um zoológico.

Alguns antropólogos defendem esse tipo de coisa, que as culturas originárias sejam culturas em que não se toca, não se pode ter diálogo, não se pode fazer nenhum relacionamento, porque elas têm que ser preservadas. O Papa Francisco diz que não. “Uma cultura pode tornar-se estéril - número 37 - quando se fecha em si própria, e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com a verdade do homem”.

Então a partir de São João Paulo II, ele trata de um conceito de cultura que é um conceito de cultura em diálogo, aberto, com a expressão aberta para o outro.

O sonho ecológico

 

Depois, no capítulo 3, quando ele vai falar do sonho ecológico, ele trata a Amazônia com uma imagem bastante poética, no número 43, onde ele diz assim que “na Amazônia a água é a rainha, rios e córregos lembram veias e toda a forma de vida brota dela”. Ele trata a Amazônia como uma espécie de coração pulsante do planeta.

Em vários momentos, ele cita versos poéticos, e no número 48, após ele falar do grito da Amazônia, ele vai citar também os biomas do Congo e de Bornéu. Não sei se ele pensa, essa é uma sutileza do Papa, não sei se ele pensa, em ainda fazer alguma coisa sobre esses dois biomas, de falar alguma coisa sobre esses biomas em algum outro momento de seu ensinamento.

O grito da Amazônia: pensar em soluções novas

 

Mas uma coisa interessante que ele fala sobre o grito da Amazônia, e que pouca gente sabe, é que a floresta ela não cresce no solo, a partir do solo, ela cresce realmente sobre o solo, porque o solo da Amazônia é muito pobre. E aí ele tem o grande perigo de desertificação. O maior perigo da Amazônia é de virar um deserto, de perder todo o seu bioma, e de fazer ele perder toda a sua capacidade de biodiversidade. Inclusive isso é um perigo para nós, humanos, porque toda aquela diversidade vegetal e animal, está em vista de poder descobrir muita cura de muitas doenças. 

Então o Papa Francisco fala disso, que a gente não pode ficar só nesses interesses econômicos e políticos, mas tem que pensar em soluções interessantes e novas, e não internacionalizar a Amazônia, porque internacionalizar a Amazônia tem o risco de internacionalizar o capitalismo na Amazônia.

Amazônia, um lugar teológico

 

Agora, para entrar em questões assim mais internas, nossas, vamos dizer sim, na página 44, número 57, ele fala de uma coisa espetacular em matéria de teologia. Eu vou citar: “Por todas estas razões, nós, os crentes, encontramos na Amazónia um lugar teológico, um espaço onde o próprio Deus Se manifesta e chama os seus filhos”.

Lugar teológico é um conceito teológico onde diz que a partir daí você pode fazer teologia. Se dizia na América Latina que o pobre é um lugar teológico. Nós podemos hoje dizer que a Amazônia é um lugar teológico. A partir daí você pode começar a fazer uma teologia. Claro inspirada na Bíblia. Claro inspirada na Tradição da Igreja, sem dúvida. Mas a partir daí pode nascer o alicerce de uma nova teologia, uma teologia que seja inspirada na ecologia, mas que seja inspirada na revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Então aqui o Papa Francisco deixa um trampolim pronto para qualquer teólogo começar a mergulhar nesse mar, nessa água da Amazônia, nesse mar da Amazônia.

Igreja chamada a caminhar com os povos da Amazônia

 

Lugar teológico é de uma fecundidade teológica absurda. A partir daí, o Papa Francisco, no Capítulo 4, vai falar do sonho eclesial, e aí no número 61 ele vai dizer que a Igreja é chamada a caminhar com os povos da Amazônia. Ele não está dizendo que é chamada a evangelizar os povos da Amazônia, mas que é chamada a caminhar com os povos. Isso muda bastante o objetivo da missiologia. Ou seja, o povo da Amazônia, os habitantes da Amazônia, não são um objetivo teológico, um objetivo de evangelização, mas a partir deles que se pode começar a dialogar. Então ele retira, em missiologia, ele tira aquele objetivo preciso de evangelizar, “aqueles lá”. Ele vai dizer mais para frente, inclusive, que a Igreja precisa aprender da Amazônia. No número 66 ele diz: “Ao mesmo tempo que anuncia sem cessar o kerigma, a Igreja deve crescer na Amazônia e deve aprender dela”.

No número 68 está mais explícito. Diz assim: “O Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho"; por outro, a própria Igreja vive um caminho de receção - de aprendizado -, que a enriquece com aquilo que o Espírito já tinha misteriosamente semeado naquela cultura.” Ou seja, a Igreja precisa aprender com a Amazônia, com os povos da Amazônia, não só a Igreja evangeliza, mas ela é evangelizada. E isso está na linha da melhor teologia da missão hoje em dia.

Quando ele fala isso, quando ele coloca essa Teologia da missão ele coloca duas coisas interessantes. Uma no número 69: “O cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, ou seja, podemos evangelizar a Amazônia, não a partir da Europa, mas a partir da própria Amazônia. E no finalzinho do número 69, ele quase como repete João Paulo II, e diz: “Não tenhamos medo!”. João Paulo II falou isso várias vezes: “não tenham medo!”. “Não tenhamos medo, não cortemos as asas ao Espírito Santo”, ele dá um grande empurrão na evangelização.

Uma santidade com traços amazônicos

 

Ele fala muito bem da questão da inculturação, coloca muito bem as coisas, mas ele dá uma coisa relativamente nova, quando no número 77 ele fala de uma “santidade da Amazônia”. “Santidade da Amazônia é falar de uma inculturação em nível espiritual, em nível celeste”, então isso é uma novidade bastante fina, bastante interessante. Imaginemos uma santidade com traços amazônicos chamada a interpelar a Igreja universal.

E não nos apressemos em qualificar como superstição, ou paganismo, certas expressões religiosas que nascem espontaneamente da vida do povo.

Em linha com a atual Teologia da Missiologia

 

Absurdamente interessante, ele continua falando da Amazônia, e aí ele diz a função do missionário, aí introduz a missão do missionário, dizendo que o “missionário procura descobrir as aspirações legítimas, que passam através das manifestações religiosas. Ou seja, a primeira tarefa do missionário, não é impor uma cultura, mas é escutar a partir dessa cultura”. Está na melhor linha da inculturação, quando ele fala da inculturação da liturgia, fala da misericórdia, cita o Concílio Vaticano II. Ele está na melhor linha da Teologia da missiologia hoje em dia.

O ministério sacerdotal

 

Com grande sabedoria, com grande discernimento do Espírito Santo, o Papa Francisco aponta algumas coisas muito interessantes, por exemplo, que se você olhar as sutilezas do texto, pode dar possibilidade de fazer uma coisa diferente.

O Papa começa uma nova reflexão sobre o ministério sacerdotal, quando no número 87 ele diz que a primeira conclusão é que esse caráter exclusivo recebido na Ordem deixa só o padre habilitado para presidir a Eucaristia. Depois ele diz: “que o padre também é habilitado para a Missa, Confissão e Unção”, ou seja, ele parece retirar a necessidade intrínseca de que o padre seja líder de uma comunidade. Ele abre, nas entrelinhas, a possibilidade de que o padre seja celebrante da Eucaristia, presidente da Eucaristia, atenda confissão e faça a Unção dos Enfermos, mas a comunidade seja liderada em outros ministérios.

E o seu olhar, quando ele afirma assim no 87: “Quando se afirma que o sacerdote é sinal de «Cristo cabeça», o significado principal é que Cristo constitui a fonte da graça: Ele é cabeça da Igreja «porque tem o poder de comunicar a graça a todos os membros da Igreja»”. Essa função não equivale a estar acima dos outros, mas ordenando-se integralmente à santidade dos membros do Corpo Místico de Cristo.

E mais para frente ele vai dizer da necessidade da Eucaristia, da necessidade de celebrar a Eucaristia, porque a Eucaristia faz a Igreja. E a partir desse número 92 ele fala de assumir, que os diáconos permanentes possam assumir mais as coisas: “Isto não exclui que ordinariamente os diáconos permanentes – que deveriam ser muitos mais na Amazônia –, as religiosas e os próprios leigos assumam responsabilidades importantes em ordem ao crescimento das comunidades e maturem no exercício de tais funções, graças a um adequado acompanhamento.”

Ele parece nas entrelinhas da possibilidade dos bispos de colocar padres para celebrar a Eucaristia, atender a Confissão e fazer a Unção e deixar outros leigos, religiosas ou diáconos liderando a Comunidade. Isso eu acho que ainda precisa ser melhor entendido, precisa ser melhor refletido, os bispos precisam colocar a mão nesse tipo de coisa, mas ele deixa um pouco vago, um pouco com a possibilidade de essas coisas serem feitas, sem entrar nas questões de celibato sacerdotal ou não celibato sacerdotal.

Presença estável de responsáveis leigos, maduros e dotados de autoridade

 

No número 94 ele diz assim:Uma Igreja de rostos amazônicos requer a presença estável de responsáveis leigos, maduros e dotados de autoridade”. E aí a nota explica o Código de Direito Canônico, dizendo que o Bispo pode autorizar um diácono, ou outra pessoa, que não possui a graça sacerdotal, a exercer o serviço Pastoral da Paróquia. Então ele mesmo dá a possibilidade de ter paróquias sem sacerdote, ter comunidades que sejam dotadas pelo serviço estável e autorizado de um bispo.

No final ele fala do ecumenismo, fala das ONGs, no começo do documento ele critica a origem do dinheiro, precisa tomar cuidado porque às vezes o capitalismo acaba corrompendo as ONGs, ele coloca todas essas coisas. E conclui com uma oração a Maria.

Os processos são mais interessantes do que os lugares

 

Em resumo: o documento é extremamente interessante. O Papa deixa nas entrelinhas várias possibilidades para os bispos agirem, em conjunto ou agirem nas suas dioceses. E essa liberdade que ele dá, inclusive aquela parte que ele diz: “não tenhamos medo, vamos para frente”, esse empurrão que ele dá na Pastoral, esse lugar teológico que ele coloca a Amazônia na Igreja e no mundo, faz com que criemos uma perspectiva nova, um processo de maturação e de trabalho de fato diferenciado.

Como o próprio Papa fala, os processos são mais interessantes do que os lugares. Tem que começar processos para que as coisas vão acontecer. O documento tem essa abordagem, ele dá liberdade para vários processos, tanto simultâneos como diferentes, ele coloca as bases para um trabalho evangelizador que não é um trabalho em que as pessoas são objetivos da evangelização, são objetos da evangelização, mas ele dá a possibilidade da Igreja aprender com essa cultura, como já aprendemos com os gregos, com os latinos, com os eslavos, com os com os povos europeus, a Igreja pode aprender da Amazônia. Isso é uma nova era na Igreja.

Documento profundo e inspirado 

 

Esse documento não vai fazer sucesso no sentido que a mídia não sei se entende muito bem a profundidade do documento, mas vai fazer escola, e uma escola profundamente interessante.

Tenho que parabenizar o Papa Francisco por ter escrito esse documento com tanta inspiração, com tanto discernimento, e com tanta inspiração do Espírito Santo.

O processo que o Papa Francisco está fazendo neste documento é um processo que começa agora e que vai enraizar dentro da Igreja. Essa é a grande esperança minha, mas do próprio Papa Francisco também, uma esperança de algo novo que tá nascendo.

*Padre Paulo Dalla Dea é da Diocese de São Carlos, formado em Teologia com especialização em catequese de Crisma, trabalhando com adolescente. É Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado. Atualmente exerce seu ministério como Missionário da Misericórdia no Santuário do Cura D’Ars, França.

Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui

15 fevereiro 2020, 12:34