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D. Mark Coleridge: horrores do passado não se repitam. Igreja seja um lugar seguro para todos

Houve momentos em que consideramos as vítimas e os sobreviventes como inimigos; "por vezes preferimos a indiferença do homem da terra e o desejo de tutelar a reputação da Igreja e também a nossa. Mostramos por demais pouca misericórdia e por isso recebemos o mesmo, porque a medida com a qual damos será a medida com a qual nos será restituído", disse Dom Mark Coleridge, na homilia da Missa presidida pelo Santo Padre na Sala Régia

Raimundo Lima  - Cidade do Vaticano

A homilia da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre na Sala Régia do Palácio Apostólico, na conclusão do Encontro sobre a “Proteção dos menores na Igreja”,  foi proferida pelo arcebispo de Brisbane (Austrália), Dom Mark Coleridge:

"No Evangelho que acaba de ser proclamado ouvimos uma só voz. A voz de Jesus. Primeiro ouvimos a voz de Paulo e no final da Missa ouviremos a voz de Pedro, mas no evangelho há somente a voz de Jesus. É coisa boa que, após todas as nossas palavras, agora há somente as palavras de Cristo: somente Jesus permanece. Como no Monte da Transfiguração (cfr. Lc 9,36).

Ele nos fala do poder, e o faz nesta esplêndida Sala Régia que, por sua vez, fala de poder. Aqui vemos imagens de batalhas, de um massacre religioso, de lutas entre imperadores e papas. Este é um lugar no qual se encontram poderes terrenos e celestes, por vezes tocados pelos poderes infernais. Nesta Sala Régia a Palavra de Deus nos convida a contemplar o poder como o fizemos nos nestes três dias passados juntos. Em meio a encontros, sala de imprensa e escritura, portanto, temos uma refinada harmonia de vozes.

De pé acima Saul adormecido, Davi se mostra como uma figura possante, como justamente afirma Abisai: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Deixes que eu o crave em terra com uma lançada”. Mas Davi respondeu: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” Davi escolheu usar o poder não para destruir, mas para salvar o rei, o consagrado de Deus.

Os pastores da Igreja, como Davi, receberam o dom do poder – mas o poder de servir, de criar, um poder que é com e para, mas não sobre, como diz Paulo, que “Deus deu para a vossa edificação e não para a vossa ruína” (2 Cor 10, 8). O poder é perigoso porque pode destruir; e nestes dias refletimos sobre como na Igreja o poder pode destruir quando é separado do serviço, quando não é um modo para amar, quando se torna poder sobre.

Uma fileira de consagrados de Deus foi colocada em nossas mãos – pelo próprio Senhor. No entanto, podemos usar este poder não para criar, mas para destruir, até mesmo para matar. No abuso sexual, os poderosos estendem as mãos nos consagrados de Deus, até mesmo nos mais fracos e mais vulneráveis entre estes. Eles dizem “sim” ao pedido de Abisai: empunham a lança.
No abuso e no seu acobertamento, os poderosos se manifestam não como homens do céu, mas como homens da terra, como ouvimos das palavras de São Paulo. No Evangelho, o Senhor ordena: “Amai os vossos inimigos”.

Mas quem é o inimigo? Certamente, não aqueles que desafiaram a Igreja a olhar de frente os abusos e seu acobertamento, por aquilo que realmente eram: sobretudo as vítimas e os sobreviventes que nos levaram à dolorosa verdade contando suas histórias com tão grande coragem. Houve momentos, porém, em que consideramos as vítimas e os sobreviventes como inimigos –, mas não os amamos, não os abençoamos. Nesse sentido, fomos os nossos piores inimigos.

O Senhor nos pede para sermos “misericordiosos como o Pai é misericordioso”. Por tudo isso queremos uma Igreja verdadeiramente segura, e por quanto possamos ter feito para assegurar isso, nem sempre escolhemos a misericórdia do homem do céu. Por vezes preferimos a indiferença do homem da terra e o desejo de tutelar a reputação da Igreja e também a nossa. Mostramos por demais pouca misericórdia e por isso recebemos o mesmo, porque a medida com a qual damos será a medida com a qual nos será restituído. Não sairemos impunes, como diz Davi, e a punição já recebemos.

O homem da terra deve morrer a fim de que possa nascer o homem do céu; o velho Adão deve deixar o lugar para o novo Adão. Isso exigirá uma verdadeira conversão sem a qual ficaremos no nível de “pura administração” – como escreve o Santo Padre na Evangelii Gaudium (n. 25) – aquela “pura administração” que não alcança o coração da crise dos abusos.

Somente esta conversão nos ajudará a ver que as feridas daqueles que foram vítimas de abusos são as nossas feridas, que o destino deles é o nosso, que não são os nossos inimigos, mas osso do nosso osso, carne da nossa carne (cfr. Gn 2, 23). Eles somos nós, e nós somos eles.

De fato, esta conversão é uma revolução copernicana. Como sabem, Copérnico demonstrou que não é o sol que gira em torno da terra, mas a terra que gira em torno do sol. Para nós, a revolução copernicana consiste na descoberta de que as pessoas vítimas de abusos não giram em torno da Igreja, mas que é a Igreja que gira em torno delas. Descobrindo isso podemos começar a ver com os olhos delas e ouvir com seus ouvidos; feito isso, o mundo e a Igreja assumem outro aspecto. Essa é a conversão necessária, a verdadeira revolução e a grande graça que pode abrir uma nova estação de missão para a Igreja.

Senhor, quando foi que te vimos vítima de abuso e não te ajudamos? Ele responderá: “Em verdade te digo: toda vez que fizeste isso a um destes meus últimos irmãos e irmãs, o fizeste a mim (Mt 25, 44-45)”. Neles, nos últimos entre os irmãos e irmãs, vítimas e sobreviventes, encontramos Cristo crucificado, o indefeso do qual fui o poder do Onipotente, o impotente em torno do qual a Igreja gira para sempre, o indefeso cujas cicatrizes resplandecem como o sol.

Nestes dias fizemos o Calvário – sim, até mesmo no Vaticano e na Sala Régia, somos uma grande montanha escura.

Escutando os sobreviventes, ouvimos Jesus chorar na escuridão (cfr. Mc 15, 34). Mas aqui nasceu a esperança de seu coração ferido, e a esperança torna-se oração enquanto a Igreja universal se reúne em torno de nós na sala do andar de cima: rezamos a fim de que a escuridão do Calvário conduza a Igreja que está no mundo à luz da Páscoa, ao Cordeiro que o nosso sol (cfr. Apocalipse 21, 23).

E no final, permanece somente a voz do Senhor ressuscitado que nos pede para não ficarmos olhando para o túmulo vazio, enquanto em nossa perplexidade nos perguntamos o que devemos fazer. Nem podemos permanecer na sala de cima onde Ele nos diz “a paz esteja convosco” (Jo 20, 19). Ele sopra sobre nós (cfr. Jo 20, 22) e o fogo de uma nova Pentecostes nos agarra (cfr. At 2, 2). Ele que é a paz escancara as portas da sala do andar de cima e as portas do nosso coração. Do medo nasce uma audácia apostólica, do mais profundo desalento a alegria do Evangelho.

Diante de nós há uma missão – uma missão que não pede somente palavras, mas ações reais e concretas.

Faremos tudo aquilo que estiver em nosso poder para levar justiça e recuperação aos sobreviventes dos abusos: os ouviremos, acreditaremos neles e caminharemos com eles; faremos de modo que todos aqueles que cometeram abusos não serão mais capazes de ofender; chamaremos a prestar contas quem escondeu os abusos; tornaremos mais rigorosos os procedimentos de seleção e de formação dos líderes da Igreja; educaremos nosso povo em relação às práticas pela tutela; faremos tudo aquilo que estiver em nosso poder para garantir que os horrores do passado não se repitam e que a Igreja seja um lugar seguro para todos, uma mãe amorosa em particular para os jovens e para as pessoas vulneráveis; não agiremos sozinhos, mas colaboraremos com todas as instâncias prepostas ao bem dos jovens e das pessoas vulneráveis; continuaremos aprofundando nosso conhecimento sobre os abusos e sobre seus efeitos, sobre por qual motivo puderam acontecer na Igreja e sobre o que deve ser feito para erradicá-los. Tudo isso exigirá tempo, mas não podemos permitir-nos falir. Este tempo não é eterno.

Se conseguirmos fazer isso e mais, não somente conheceremos a paz do Senhor ressuscitado, mas nos tornaremos a sua paz numa missão até os confins da terra. No entanto, poderemos tornar-nos a paz somente se antes tivermos nos tornado o sacrifício. Digamos sim a isso numa só voz, quando neste altar imergimos nossos falimentos, nossas traições, toda a nossa fé, esperança e amor naquele único sacrifício de Jesus, vítima e vencedor, que “enxugará toda lágrima de seus olhos e não mais haverá a morte, nem pesar, nem grito, nem dor, porque as coisas de antes passaram” (Apocalipse 21, 4)".

 

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24 fevereiro 2019, 10:04