· Relendo um clássico da literatura espiritual ·

Uma vida a caminho

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20 dezembro 2019

«Pela graça de Deus, sou homem e cristão; pelas ações, grande pecador; pela situação, peregrino sem abrigo, da mais baixa condição, sempre errante de lugar em lugar». Não existem muitos escritos que possam ostentar um início tão simples, mas ao mesmo tempo tão cativante, a ponto de conquistar até o leitor mais distraído. Quem teve o prazer de ler as páginas dos Relatos de um peregrino russo, uma pequena mas fascinante obra-prima da literatura espiritual do século xx, cujo autor permaneceu para sempre desconhecido, não pode deixar de ser capturado pela curiosidade de descobrir pelo menos alguns dos elementos relativos aos lugares percorridos pelo misterioso eremita, nas suas intermináveis perambulações.

Embora a ênfase principal seja justamente dada ao objetivo da busca íntima do asceta eslavo e ao método da sua exploração mística — temas abordados várias vezes por muitos cultores desta obra literária — contudo é difícil ignorar completamente os aspectos terrenos que o circundam, como se ele se encontrasse numa dimensão puramente espiritual, sem qualquer vínculo com a realidade espaço-temporal. Considerando que nos seus relatos o autor se refere à guerra da Crimeia, podemos afirmar sem hesitação que a redação dos mesmos é posterior a 1853.

Do protagonista, clássico exemplo de homo viator, de homem que cresce, que está ou deveria estar sempre “em saída”, como diria o Papa Francisco, de homem que progride e avança segundo o ritual universal do caminho, sabemos que se trata de um «peregrino errante de lugar em lugar», que nada possui para além de um alforje com um pouco de pão seco e de uma Bíblia. Sabemos também que a sua obsessão em descobrir como é possível rezar incessantemente nasceu numa igrejinha campestre, da escuta aparentemente fortuita do convite contido na primeira carta aos Tessalonicenses («Orai sem cessar em todo o tempo através do Espírito»), o qual transforma completamente a sua existência que já antes, contudo, se tinha dissimulado de digressão solitária, consciente de ser homem cristão, ainda que sob as vestes de grande pecador necessitado da misericórdia divina, ansioso por ouvir no seu coração a voz de Deus, muitas vezes apenas sussurrada.

Antes deste encontro com a Palavra, para ele o caminho representava um simples andarilhar, praticamente sem rumo nem sentido, quase uma fuga de tudo e de todos, mas talvez sobretudo de si mesmo, enquanto que mais tarde se tornou um itinerário, ainda não bem definido mas desta vez a percorrer entre dois pontos muito claros, ou seja, partindo sempre humildemente dos próprios limites e da sua pobre humanidade, para finalmente chegar à segurança da fé, no seguimento perfeito de Cristo. E para quantos procuram tal meta, que melhor senda do que a oração incessante, como precisamente o apóstolo Paulo sugere na sua epístola? «Divaguei longamente por várias paragens», narra o nosso viandante em diferentes ocasiões, passando de aldeia em aldeia ao longo de um caminho que eventualmente o levasse a encontrar um starets (mestre espiritual), que o pudesse iluminar sobre o rumo a seguir, enriquecendo-o no conhecimento da doutrina espiritual, para alcançar a salvação da própria alma. Finalmente, um monge com o qual se deparou ao longo da vereda revelou-lhe o mistério, ensinando-lhe a “oração do coração”, uma fórmula fácil de aprender que consiste na repetição contínua destas palavras simples, mas igualmente poderosas: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador!”, uma síntese extrema, mas em termos de conteúdo talvez não menos eficaz do que a Summa theologiae, um íntimo refrão a fazer seu através de um complicado exercício da própria respiração, a conformar o mais harmoniosamente possível com o ritmo cardíaco em todas as horas do dia e até durante o sono da noite. Eis a bússola que o orientará em todas as suas andanças.

No entanto, se por um lado Cristo se tornava o derradeiro objetivo a ser alcançado, por outro, a meta geográfica mudava de tempos em tempos, de acordo com o seu estado de espírito e com as notícias mais ou menos credíveis que lhe chegavam de muitos quadrantes, sobre a possibilidade de encontrar um monge sábio que continuasse a norteá-lo na prática cada vez mais completa da “oração do coração”. Portanto, seria interessante procurar explorar com os olhos da nossa mente aquela remota região, com os seus amplos horizontes, onde outrora um homem solitário viveu uma maravilhosa e extraordinária aventura transcendental.

Assim, tornando-nos companheiros de viagem do peregrino, podemos traçar um breve itinerário para seguir os seus passos neste imenso cenário, uma terra extremamente vasta e misteriosa, da qual contudo o próprio autor quase nunca fala de maneira descritiva. Partindo da terra natal de Orel (que significa “Águia”), não distante da fronteira com a Ucrânia, e atravessando toda a incomensurável planície do atual Tartaristão, delimitada ao fundo pelos imponentes montes Urais, uma das mais antigas cordilheiras do mundo, das narrações deduz-se que o protagonista decidiu prosseguir cada vez mais na direção do Oriente, pois estava «convencido de que nos bosques e estepes daquela região desolada» encontraria «uma solidão e um silêncio próximos da perfeição».

Ao longo do caminho que o conduzia lentamente rumo a Irkutsk, na Sibéria ocidental, um dos maiores biomas do nosso planeta, na moldura de uma natureza de certa forma primordial, composta por florestas de coníferas que ainda hoje cobrem grande parte daquela tundra boreal, faziam-lhe companhia — por assim dizer — as árvores de um bosque cada vez mais denso, habitado por diferentes espécies de pinheiros, debaixo dos quais o viajante costumava passar muito tempo sentado a ler a Bíblia, mas também um exemplar desgastado da Filocália (coletânea de textos tradicionais sobre a oração ortodoxa, inspirada nos anacoretas orientais dos primeiros séculos do cristianismo), adquirida havia anos para estudar mais profundamente a espiritualidade ascética e mística. Da terra siberiana, o peregrino voltou a partir rumo a oeste, orientando-se desta vez mais concretamente para Kiev, com o intuito de ali rezar no célebre Mosteiro das grutas, lugar de culto cristão imprescindível desde a Idade Média, e sucessivamente para Odessa, de cujo porto deveria singrar com destino a Jerusalém.

Depois de treze longos anos de deslocamentos contínuos, numa divagação apenas aparentemente insensata, de lés a lés num território tão vasto a ponto de levar qualquer um a perder o sentido de orientação, através de pradarias infinitas, planícies, florestas e campos, com chuva, vento e neve, por trilhas muitas vezes intransitáveis — «ora havia neve, ora chuva, e ainda um vento forte e o frio. Era necessário atravessar um riacho: assim que dei alguns passos o gelo quebrou-se debaixo dos meus pés e caí na água», escreve o autor num certo ponto dos seus relatos — contudo ao longo do tempo o seu sonho permaneceu inalterado, ou seja, aquele de um dia chegar precisamente a Jerusalém, uma meta que no entanto o autor destes contos não nos dá a saber se realmente um dia foi alcançada, embora posteriormente se tenha propagado a notícia de que o viajante não só a alcançou, como em seguida partiu para o santo monte Athos, onde teria terminado os seus dias, concluindo assim a sua consagração pessoal à oração.

Não obstante no seu coração aspirasse apenas à Cidade celestial, contudo não queria deixar de fazer tudo o que fosse possível para procurar alcançar um dos principais objetivos terrenos da sua vida: pisar o solo pedregoso e poeirento outrora trilhado por nosso Senhor, para assim prelibar a alegria de um dia ter estado pessoalmente nos mesmos lugares por Ele escolhidos para ali dar cumprimento ao desígnio mais excelso, isto é, resgatar o homem de uma vez por todas da sombra constrangedora do mal.

Sérgio Suchodolak