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Ucrânia, um edifício atingido por um míssil russo Ucrânia, um edifício atingido por um míssil russo 

Testemunho de jornalista ucraniana: a coragem de falar em nome dos que não têm voz

A jornalista do Programa Ucraniano da Rádio Vaticano, Svitlana Dukhovych, apresentou seu testemunho pessoal durante as Jornadas Internacionais de São Francisco de Sales, promovidas pela Federação Francesa da Mídia Católica, Dicastério para a Comunicação, SIGNIS e UCSI, que se realizaram em Lourdes, França, de 25 a 27 últimos

Svitlana Dukhovych

“Recordei o início da guerra. Na manhã de 24 de fevereiro, o choque foi bem maior que agora: após 11 meses de conflito, a mente aprende a reagir um pouco com esta notícia. Naquele dia, a única coisa que eu queria gritar ao mundo inteiro era: "Façam alguma coisa!". Mas, depois, compreendi que este grito era dirigido mais para mim: tinha que falar em nome de tantos ucranianos, que não tinham voz, pois suas vidas tinham sido ceifadas por um tiro ou um míssil ou por estar em luto por seus entes queridos.

Por isso, eu devia transmitir o sofrimento deles; devia ser porta-voz dos que não podiam falar de sua dor, dos que fugiam da guerra, dos que ajudaram milhões de pessoas a sobreviver ou dos que rezavam por eles.

Para mim, não se tratava de ter coragem ou não de falar, segundo o tema daquelas jornadas, porque eu não corria perigo ou risco. Eu tinha apenas confiar nas pessoas, com as quais trabalho, como em nossos leitores e ouvintes: se eu não falasse sobre a minha dor ou o sofrimento do meu povo, é porque eu não acreditaria que alguém fosse capaz de ouvir e entender tais sofrimentos e partilhá-los; porque não acreditaria no fato em que podemos construir a humanidade, cientes de que a violência alcançaria seu objetivo final.

Se eu falo, é porque tenho fé na humanidade, porque tenho esperança.

Foi encorajada a falar também pela direção da nossa Rádio, ciente da força da missão da mídia vaticana entre os que sofrem, dando-lhes voz e uma luz de esperança apesar da obscuridade.

Desde o primeiro dia de guerra, comecei a entrar em contato com pessoas na Ucrânia, que falavam também outras línguas, para que os colegas das diversas redações de programas pudessem falar da triste realidade ucraniana. Então, procurei entrevistar algumas pessoas, entre as quais o Padre Ruslan Mykhalkhiv, reitor do Seminário Católico Romano de Kiev, que disse no dia 25 de fevereiro: “Há tanta tristeza em nós, que, certamente, não nos paralisa. As pessoas têm medo e tentam fugir, esvaziando suas contas bancárias para pagar a gasolina e partir. Ao mesmo tempo, nós, como Igreja, estamos prontos para enfrentar esta emergência. Nossos sacerdotes permanecem em seus devidos lugares, prontos para acolher as pessoas que fogem; se houver necessidade, abriremos também as portas dos nossos seminários, para dar uma hospedagem segura”.

Minhas primeiras entrevistas indicaram-me o caminho. Quando, durante a guerra, comecei a estudar Ciências de Comunicação na universidade, nunca havia feito nenhum curso de comunicação ou jornalismo. Pessoas como o Padre Ruslan foram meus professores, com os quais aprendi a entrevistar os que estavam envolvidos no conflito e sofrendo: eles falavam, com muita dignidade, da sua dor e dos sofrimentos do povo, sem desespero ou desprezo por ninguém. Assim, com ele, aprendi que o choque e a tristeza não deviam me paralisar, mas sim a agir.

O maior desafio para mim foi a diferença das línguas, culturas, mentalidade. Algumas palavras eram difíceis de ser traduzidas, porque o significado não era o mesmo, como a palavra "carinho". Em ucraniano ou em outras línguas eslavas, a palavra não queria dizer "dar carinho", mas "dar um abraço ou mimo". Durante toda a guerra, tivemos, muitas vezes, que traduzir a frase "conflito na Ucrânia" em outras línguas. Nossos colegas italianos diziam que conflito era sinônimo de guerra, mas na língua ucraniana a palavra "конфлікт" (conflito) significa "discussão", "briga" e raramente era usada para definir um fenômeno mais amplo.

O testemunho de Oleksandr, um jovem de Kharkiv, me fez entender que o sentido da nossa existência não consistia apenas em fazer reflexões ou ler livros, mas nas nossas ações. Durante todos os dias de guerra, bombas e mísseis eram lançados, continuamente, em sua cidade, localizada a 30 km da fronteira com a Rússia. De fato, ele disse: “Depois de algumas semanas de conflito, eu já não aguentava mais. Por isso, compreendi que tinha de reagir para além desta realidade”. Assim, com a sua bicicleta, começou a levar comida aos idosos mais próximos e, com o tempo, criou uma verdadeira rede para socorres os necessitados com outros voluntários: “Ao ajudar as pessoas, pela primeira e segunda vez, entendi que era isso que devia fazer… e enquanto eu tiver forças, quero continuar a ajudar”.

Depois, fiquei impressionada também com a história da Irmã Svitlana Matsiuk, de Khmelnytskyj, na Ucrânia Central: ela ia ao hospital visitar os soldados feridos e ajudar os refugiados, que lhe contavam sobre as terríveis cenas de quando fugiam de suas cidades: “Ao ouvir o que diziam, a gente até chegava a se interrogar sobre a existência de Deus e sobre a origem do mal. Antes da guerra, eu sabia que o mal existia, mas isso não tocava nossas vidas de perto como agora. Esta é outra realidade, na qual Deus existe, sofre e é crucificado... Daí, Deus me fez uma pergunta: 'Você quer entrar nesta realidade comigo?'. Então lhe respondi: ‘Não quero fugir desta realidade, criando mundos ilusórios, mas entrar e permanecer nela para fazer o maior bem possível’.”

As palavras sinceras desta religiosa, que não teve medo de fazer questionar a Deus, me deram mais força. Deste modo, entendi que eu também não queria fugir desta realidade, apesar de tão dolorosa. Para mim, isso me ajudou a continuar coletando outros tantos testemunhos para transmitir aos outros.

O tema destas “Jornadas Internacionais de São Francisco de Sales”, em Lourdes, foi "Como poder fazer-nos ouvir?". Acho que, se aprendermos a ouvir primeiro, a encontrar o que é humano, o que é profundamente bom e que nos torna semelhantes aos outros - sofrimentos, medos e desejo de viver, apesar dos pesares, -saberemos também ajudar os outros a aprender a ouvir. Não poderia ter feito meu trabalho sem conhecer meus colegas, sem saber ouvi-los, mesmo quando não podem falar”.

 

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28 janeiro 2023, 09:53