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A personalidade jurídica internacional da Igreja e o Acordo Brasil-Santa Sé

Na atual conformação política do Estado e da Comunidade internacional, a Igreja pretende servir à pessoa humana e aos seus direitos, mediante um concreto recurso jurídico: a Santa Sé constitui-se uma pessoa jurídica internacional em todos os seus direitos e deveres.

Padre Marcus Vinicius Brito de Macedo – Rio de Janeiro

Passados dois lustros do Acordo Brasil-Santa Sé ainda nos deparamos com o uso indevido da expressão "Estado laico" e a pouca compreensão dos motivos pelos quais a Igreja cumpre o seu papel diante da natureza específica de um Estado, que algumas vezes tenta fundamentar a laicidade num significado negativo diante das diferentes manifestações das religiões, mas deveria evocar a expressão para sublinhar uma respeitosa neutralidade e não acrescentar nada de novo à sua realidade temporal.

O relacionamento entre a Igreja Católica e os sujeitos que compõem as Relações Internacionais, especialmente os Estados, concretiza-se a partir de um diálogo sem ambiguidades e respeitoso das partes nele envolvidas e a Igreja não se subtrai naquilo que tange aos seus deveres, porém também apresenta os seus direitos a partir da personalidade jurídica própria de sua missão apostólica e da tutela da liberdade de seus membros no exercício da liberdade religiosa, assim permitindo à laicidade estatal a coincidência a com a prática do Estado de direito que reconhece a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais que lhe são inerentes, bem como a autonomia que compete à ordem moral e religiosa que se encontra fora da competência e das funções que são próprias Estado.

Na atual conformação política do Estado e da Comunidade internacional, a Igreja pretende servir à pessoa humana e aos seus direitos, mediante um concreto recurso jurídico: a Santa Sé constitui-se uma pessoa jurídica internacional em todos os seus direitos e deveres, isto é, é soberana e independente ("superiorem non recognoscens") como qualquer outro Estado, firma tratados internacionais bilaterais e multilaterais, mantém relações diplomáticas com diversas nações e forma parte de organizações internacionais.

Além disso, mas não por causa deste fator, está dotada de soberania territorial mediante o Estado da Cidade do Vaticano e quanto às Nações Unidas possui o estatuto de Observador permanente como Estado não membro, ou seja, com voz, mas sem voto. É importante recordar que em outras épocas a Igreja Católica sempre foi reconhecida em sua independência, ao colocar-se como um dos poderes supremos da única Societas medieval ou situando-se como uma das únicas sociedades perfeitas, junto ao Estado e ao mesmo nível que ele.

Não obstante, há um dado sumamente importante, onde apesar da perda dos Estados Pontifícios e de não possuir soberania territorial, a Santa Sé continuou atuando como um membro soberano da Comunidade Internacional e sendo aceita como tal, pois a personalidade jurídica internacional da Igreja sempre se baseou no cumprimento dos deveres e funções do Direito Internacional, sendo os mais clássicos: o ius legationis, o ius tractatuum, o ius foederum, além dos direitos a participar em conferências internacionais ou organizações internacionais.

Neste caso a Igreja Católica segue o princípio de efetividade, que regula a vida da Comunidade Internacional, sendo possível enunciá-lo como: aquele princípio hermenêutico primário que valoriza o que efetivamente existe, e verifica-se nos atos e acontecimentos à presença das Relações Internacionais, obtendo por meio da observação e análise da realidade, os princípios que norteiam segundo a justiça, e deduzindo as consequências que se originam.

Esse mesmo princípio quando aplicado pelas entidades que cumprem de modo efetivo algumas características, concede às mesmas a subjetividade internacional. Por exemplo, aplica-se na hora de atribuir a subjetividade aos Estados da seguinte maneira: uma vez comprovado que, de fato, nesse ente se dão os elementos de população, território, organização, e soberania, adquire-se a subjetividade internacional.

A partir deste viés a personalidade jurídica internacional da Igreja sempre foi reconhecida porque esteve vinculada às características exercidas pelo ministério do Romano Pontífice com sua estrutura de governo, a Santa Sé.

Ressalto que a Santa Sé enquanto órgão de governo do Santo Padre não é um caso único com subjetividade jurídica ao exercer os direitos acima elencados e que dentro de pouco nos deteremos. Cito o caso do Monte Athos, que trata-se de uma comunidade monástica, cuja representação é exercida pelo Ministério grego de Relações Exteriores. Se há relações internacionais, significa que possui subjetividade jurídica internacional ainda que parcial neste caso[1], por outra parte, ao menos teoricamente, podemos dizer que confissões estão representadas por Estados confessionais.

Em segundo lugar, o fato diferenciador mais importante - e que justifica a personalidade em questão - é que a Igreja Católica é a única religião dotada simultaneamente de caráter universal e de um regime centralizado. Exemplifiquemos: as Igrejas autocéfalas separadas de Roma desde o século XI, e que costumamos chamar de ortodoxas, carecem de uma autoridade suprema. As Igrejas nascidas da Reforma têm um caráter de Igrejas nacionais. O Islã carece igualmente de um regime centralizado, isto é, não há atualmente outra instituição religiosa que reúna esta dupla qualificação para erigir-se como sujeito de Direito Internacional[2].

Diferentemente das demais confissões, a Igreja Católica tem simultaneamente estas características: universalidade (potencial e sociologicamente estende-se às nações de toda terra) e regime centralizado (há uma autoridade suprema, cujo sujeito é o Bispo de Roma junto ao Colégio Episcopal), mas através da Santa Sé a personalidade jurídica internacional da Igreja carece de força estratégica no plano político, não possui poderio bélico, não tem relevância de tipo comercial ou financeiro, ou seja, não vislumbra por intermédio de sua personalidade nenhuma inimizade, mas pelo contrário, deseja reafirmar sua credibilidade como uma autoridade puramente moral.

Sendo a única instituição religiosa dotada de subjetividade internacional independente de qualquer outro Estado, não significa uma discriminação. A discriminação no sentido pejorativo da palavra, é uma diferença injustificada, e neste caso a diferença está sobradamente justificada, seja pelas razões mencionadas anteriormente, seja por razões históricas e porque resulta congruente com a natureza de sua missão e oportuno salvaguardar a liberdade e independência necessárias para alcançar a sua finalidade.

Tanto no âmbito da Diplomacia como da doutrina científica do Direito internacional, composta por eminentes juristas, a subjetividade internacional da Santa Sé é aceita pacificamente[3].

Depois destas considerações especifico a particularidade de cada um dos direitos constituintes da personalidade jurídica internacional da Santa Sé.

A Igreja Católica, através da Santa Sé, exerce o ius legationis, direito de legação ativa e passiva, pelo qual um Estado envia a outro uma missão diplomática e por outro lado encontra-se disposto a receber uma missão com a mesma finalidade; com 180 nações e diversas Organizações Internacionais. Tudo isso é fruto de um mútuo acordo entre os Estados, conforme retrata o artigo 2 do Convênio de Viena sobre as relações diplomáticas de 18 de abril de 1961: "O estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados e o envio de missões diplomáticas permanentes efetua-se por consentimento mútuo".

As chamadas Nunciaturas permanentes tiveram o seu início no ano de 1500, onde tais Legados se diferenciaram dos demais que assim viveram esta missão, pois a partir do século XVI os Núncios não recebiam somente uma tarefa específica, porém labores a largo prazo que muitas vezes duravam todo o tempo de um Pontificado.

Num primeiro período, o estabelecimento dos Legados permanentes esteve presente na zona geográfica da Itália, Península Ibérica e França. No Brasil, em 1824, D. Pedro I reconheceu o catolicismo como religião oficial e neste mesmo ano enviou à Roma um sacerdote para que iniciasse algumas negociações condizentes com a firma de uma concordata, mas foi no reinado de D. Pedro II, em 1829, durante o breve pontificado de Pio VII (1829-1830), que permitiu-se a criação da primeira Nunciatura em território americano. Teve lugar no Rio de Janeiro, sendo o D. Pietro Ostini o primeiro Núncio Apostólico no Brasil.

Sem dúvida devemos reconhecer que a Diplomacia da Santa Sé é a pioneira no surgimento de uma Diplomacia que buscava a representação e o diálogo com os poderes políticos desde o baixo Império Romano e que serviu de modelo para a instauração do sistema diplomático no período do Renascimento.

O ius tractatuum que é o direito de estipulação de autênticos tratados e acordos internacionais nos âmbitos bilaterais e multilaterais se constituiu desde muito tempo e estes são numerosos, o que fez com que a Santa Sé fizesse parte da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969, ratificada posteriormente pela mesma a 22 de maio de 1977. As Convenções bilaterais através de acordos parciais sobre pontos determinados entre a Santa Sé e um Estado são diversificados, porém existem as tão conhecidas Concordatas[4] como o Acordo Brasil-Santa Sé que não deveria ser entendido no marco jurídico brasileiro como uma simples lei ordinária, mas complementar naquilo que tange aos Direitos Humanos concernentes à população brasileira.

Como exercício do ius foederum são inúmeras as intervenções da Santa Sé para solucionar pacificamente os conflitos internacionais. Estas foram de singular importância para o reconhecimento da personalidade jurídica internacional da Igreja Católica. Podemos recordar a  intervenção de Alexandre VI indicando à Espanha e Portugal as  devidas áreas de competência do novo continente, as controvérsias do ouro entre Brasil e Bolívia (1909) a situação entre Argentina e Chile a propósito do Canal de Beagle até os dias atuais com a intervenção do Santo Padre Francisco quanto ao embargo econômico e comercial imposto à Cuba, bem como os inúmeros apelos referentes ao término de conflitos como ultimamente no território da Ucrânia.

Em suma, a Santa Sé unida à Igreja Católica é uma pessoa moral que abarca o conceito de pessoa jurídica e adiciona algo a mais, isto é, sua dimensão teológica enraizada no ius divinum. Esta personalidade tem um grande sentido para que a Igreja sempre permaneça nos limites de sua missão pastoral e religiosa, podendo aspirar ser escutada e influenciar na formação da consciência não como mera organização religiosa, mas como um ente jurídico dotado de Direito próprio reconhecido pelo Estado que faz dela não somente um agente formador de alguns milhões no Brasil, porém um verdadeiro contributo à dignidade dos brasileiros em todas as formas de convivência humana: família, posto de trabalho, escola até a vida regional, nacional e internacional.

O papel do Estado da Cidade do Vaticano, nascido dos Pactos Lateranenses (1929), é instrumental e acessório à Santa Sé, pois foi criado precisamente para dotá-la de um substrato territorial mínimo para permitir a independência do Romano Pontífice. Deste modo, o Papa não se encontrará submetido `a soberania de nenhum Estado, não sendo cidadão da Itália, nem de nenhum outro.

Concluo que a vivência ordinária da Santa Sé no relacionamento com a Comunidade Internacional tem como base fundamental o respeito à  noção de soberania desde sua origem moral e cultural, que pertence aos povos e nações, e que se enraíza na identidade dos mesmos, na história que viveram e que fez deles algo único e específico. Existem uns "direitos das nações", fundados sobre a cultura homogênea dos povos, uns "direitos da família humana" em que a humanidade das pessoas não conhece fronteiras e um "direito dos estados" baseados na integridade e soberania destes.

A personalidade jurídica da Santa Sé, principalmente no que toca à firma de Acordos, como o estabelecido com a República Federativa do Brasil, sempre proclamará através destes instrumentos que as Relações Internacionais devem proporcionar aos sujeitos deste cenário um profundo clima de respeito e confiança, assim como a plena constitucionalidade com o cumprimento de seus artigos claros, evidentes e nítidos, que reproduzem o que desde 1988 tem validade e eficácia no território brasileiro.

*Pe. Marcus Vinicius Brito de Macedo, sacerdote da Arquidiocese do Rio de Janeiro, pós- doutorando em História da Diplomacia na Universidade de Brasília. Doutor em Relações Internacionais e Comunicação Social pela Universidade de Navarra. Professor do Instituto Superior de Direito Canônico do RJ e da PUC-Rio.

 

[1] cf. OSMANZCYK, E.J., The encyclopedia of the United Nations and International Relations, Taylor and Francis 1990, vocábulo Athos.

[2] cf. BERTAGNA, B., Santa Sede ed Organizzazioni internazionali, em "Monitor Ecclesiasticus" 107 (1982) 153-159.

[3] cf. FERLITO, S., L´Attività internazionale della Santa Sede, Giuffrè, Milano 1988, p. 11-17.

[4] cf. PETRONCELLI, F.H., Chiesa Cattolica e Comunità Internazionale, riflessione sulle forme di presenza, Napoli, 1989, p. 177-198.

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23 abril 2021, 15:01