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Uma vista aérea da vila de Bin do município de Mingin, na região de Sagaing, depois que os moradores dizem que foi incendiada pelos militares de Mianmar (Foto tirada com um drone. REUTERS/Stringer) Uma vista aérea da vila de Bin do município de Mingin, na região de Sagaing, depois que os moradores dizem que foi incendiada pelos militares de Mianmar (Foto tirada com um drone. REUTERS/Stringer) 

Cardeal Bo: Via Sacra é vivida ainda hoje em Mianmar

Em entrevista ao Vatican News, o arcebispo de Yangon e presidente da Federação dos Bispos Asiáticos fala sobre a dramática situação no país após o recente ataque à Catedral de Mandalay, a emergência humanitária e a perseguição contra os cristãos no país, e como a Igreja na Birmânia está se preparando para a Páscoa.

Por Deborah Castellano Lubov

O cardeal Charles Maung Bo, arcebispo de Yangon, Mianmar, diz que a Via Sacra ainda é vivida hoje em Mianmar, à medida que a violência aumenta e o país enfrenta uma enorme crise de refugiados.

Em entrevista ao Vatican News, o cardeal asiático que é presidente da Federação da Conferência Episcopal Asiática, reage ao ataque ocorrido na última sexta-feira à Catedral de Mandalay, o mais recente episódio de agressão contra a Igreja Católica em Mianmar, que se tornou alvo de uma junta militar. Contemporaneamente ao aumento das perseguições contra os cristãos no país, piora dramaticamente a emergência humanitária, recorda o purpurado.

Além disso, nesta Semana Santa, o cardeal fala como a Igreja na ex-Birmânia está se preparando para a Páscoa, o legado da visita do Papa em 2017 ao país e seus contínuos apelos pela paz na nação, e o que traz esperança em meio a uma situação sempre mais dramática.

Eminência, o senhor definiu a situação em Mianmar como 'uma prolongada Via Sacra', um ano após o golpe militar (1 de fevereiro de 2021) que interrompeu abruptamente o caminho para a democracia. Em tal clima, como a Igreja no país está se preparando para a Páscoa?

A Via Sacra é vivida ainda hoje pelo povo de Mianmar. Ainda estamos no Gólgota no Calvário. Mesmo nestas últimas noites de sexta-feira, enquanto os fiéis rezavam a Via Sacra na Catedral de Mandalay, soldados entraram naquele lugar sagrado com suas armas e aterrorizaram as pessoas. Os sofrimentos de Cristo são revividos agora pelas vítimas da guerra, os refugiados, as viúvas que choram e as crianças deixadas sem pai, os rapazes e moças que morrem nas selvas de Mianmar. Lamentamos que não possamos resolver esses conflitos por nosso próprio poder – que nossos esforços pela paz sejam até agora em vão. Deus sofre em seu povo. A dor das últimas horas de Jesus se reflete nos olhos e nos corações das mães cujos filhos e maridos morrem em Mianmar e na Ucrânia. Eles vivem agora a Via Sacra.

Naquele momento até mesmo Jesus clamou em oração ao Pai para que esta hora passasse: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Mas ele se submeteu e continuou até o fim. Podemos não ser tão fortes. Clamamos ao Pai para perguntar por que ele permite o mal que está destruindo nossa nação, permitindo que o povo de Mianmar sofra sem fim. Na fé, temos a certeza de que a Via Dolorosa, a Via Sacra, é o caminho pelo qual Deus vence o mal e traz a paz. As orações do povo durante esta Semana Santa são sinceras. Eu não posso acreditar que Deus está se fazendo de surdo ao seu povo sofredor.

Como o senhor descreveria a situação da Igreja Católica birmanesa neste período?

Todos em Mianmar estão vivendo um momento de grande estresse, budistas, muçulmanos e cristãos. Os conflitos armados estão ocorrendo em pelo menos quatro frentes, no leste, norte, noroeste e centro de Mianmar. Mas mesmo para aqueles que não testemunham execuções extrajudiciais ou têm suas casas e comunidades destruídas, todos são afetados pelo colapso da economia e dos serviços básicos. Mais da metade da população está reduzida à pobreza e os preços dos alimentos estão subindo. Mas o que as pessoas mais sentem e se ressentem, especialmente os jovens, é que seu futuro lhes é tirado. Tudo isso é um grande desperdício. Os católicos de Mianmar sofrem tudo isso junto com todos os outros e possivelmente mais, porque a maior violência é perpetrada nas comunidades onde as populações cristãs são maiores, tanto católicas quanto protestantes. Mais de quinze igrejas e conventos já foram profanados, saqueados ou bombardeados. A estratégia de contra-insurgência dos militares é destruir a base comunitária para qualquer resistência. Nesta escuridão envolvente de violência e maldade pura, a Igreja não pode suportar falar de vingança e mais violência. Temos implorado consistentemente por reconciliação. Embora entendamos a profunda decepção da juventude, estamos profundamente preocupados com os múltiplos grupos armados, sem liderança ou uma estratégia comum. Em áreas onde as Forças de Defesa Popular (PDF) desorganizadas operam sem objetivos claros, a violência retributiva brutal do exército está ocorrendo, infelizmente, deslocando milhares.

 Dada a situação em Mianmar, há algum apelo de Páscoa que o senhor acredita que deveria ser feito?

Como Jesus disse aos fariseus sobre seus discípulos: ‘Se eles ficarem calados, as próprias pedras clamarão.’ Sim, há um apelo, mas nos perguntamos se alguém está ouvindo. Dada a guerra na Ucrânia, entendemos que a atenção do mundo está em outro lugar, mesmo que os crimes cometidos aqui sejam os mesmos, mesmo com as mesmas armas de destruição russas. Nosso primeiro apelo é pela paz. Nosso apelo é dizer basta! Pare a matança e a brutalidade obscena! Além disso, nosso apelo é para aqueles que precisam desesperadamente de comida, abrigo e assistência médica. As principais agências humanitárias estão aqui no país, mas não têm acesso às pessoas que precisam de seu apoio. O PAM, o CICV e o ACNUR são impedidos de chegar aos locais de necessidade. No mínimo, dar acesso à assistência humanitária. Nós, a Igreja Católica, tentamos ajudar, com nossos próprios recursos. Tememos que a Caritas Internationalis agora volte sua atenção para a Ucrânia e não possa ajudar outras vítimas da guerra.

A crise política em Mianmar resultou em uma grande onda de refugiados. Que mensagem o senhor gostaria de dar a eles?

Eles são os únicos a dar uma mensagem. Os despossuídos são aqueles a quem devemos ouvir. Mesmo em seu caminho da cruz, Jesus parou para dar atenção às mulheres de Jerusalém. Devemos fazer o mesmo, ouvindo a mensagem que todo o mundo deveria ouvir. O mais recente relatório das Nações Unidas indica que há 520.000 pessoas recém-deslocadas, além das 370.000 já expulsas de suas casas. Eles têm uma mensagem para os líderes do mundo. Recentemente, viajei para o estado de Kayah para ouvir os deslocados, mas os controles e o tempo eram tais que só pude conhecer alguns deles. Minha mensagem para eles é que eu quero ouvi-los, entender seu sofrimento, saber seu relato sobre o que aconteceu com eles.

Apesar de todas as dificuldades, o senhor viu algo que lhe deu esperança?

Se formos realistas, não é fácil ver qualquer motivo de esperança. Dado o poder e a determinação dos militares, não há solução ou salvação rápida e fácil. Mas o povo de Mianmar já viveu sete décadas de regime militar e sobreviveu. Os mais velhos reconhecem o que está acontecendo, embora isso seja mais feroz do que qualquer coisa que vivenciamos no passado. As pessoas não se deixam enganar por mentiras. Uma fonte de esperança é a pura resiliência e bom senso das pessoas. Para sobreviver, as pessoas recorrem aos pequenos negócios, alguns recolhem plásticos e metais para vender, outros montam pequenas barracas de comida, tudo para ganhar um pouco para sobreviver.

 Como cristãos, encontramos esperança no profundo mistério da loucura da cruz. Todas as pessoas zombavam de Jesus para se salvar, ou seja, descer da cruz. Somente o bom ladrão poderia ver que Jesus traz um tipo diferente de salvação. Somos convidados a compartilhar a fé deste bom ladrão. Ser discípulo de Jesus não nos isenta da morte – antes exige de nós um morrer diário. No nosso caso, a perseguição e a injustiça tornam-se muito reais.

Como presidente da Federação da Conferência Episcopal Asiática (FABC), apesar dos desafios para os cristãos em todo o continente, quais são os sinais positivos?

A Igreja de Mianmar não está sozinha na Ásia vivendo sob um regime autocrático, ou onde a liberdade é restrita. Jesus pediu a seus seguidores que fossem fermento na sociedade, que estivessem presentes e que tivessem impacto por nossas vidas e por nossos ensinamentos. Os seguidores de Jesus continuam a fazer isso mesmo em situações na Ásia onde as liberdades são limitadas. Na maioria dos países da FABC, exceto Filipinas e Timor Leste, a Igreja é minoria. No entanto, a Igreja tem uma importância além de seus números, especialmente onde o pessoal da Igreja pode se envolver em educação, saúde e serviços sociais.

A quem o senhor credita as vocações florescentes no continente asiático?

As vocações estão florescendo no subcontinente, especialmente na Índia, eu entendo, e em alguns bolsões do Sudeste Asiático, como o Vietnã. Mas não podemos dizer que eles estão crescendo em todos os lugares. Aqui em Mianmar, nossos seminários foram interrompidos pela COVID e pelo conflito. Mas o exemplo das irmãs em cuidar das pessoas neste momento é uma grande inspiração para os jovens. A profunda fé das pessoas neste tempo de provação é impressionante.

 O Santo Padre visitou Mianmar em 2017. Como o legado dessa visita papal pode ajudar seu país a recuperar a unidade e retomar o caminho para a liberdade?

O Papa Francisco recorda do povo de Mianmar. Ele já nos mencionou dez vezes em mensagens calorosas de consolo e desafio. Ele mantém Mianmar perto de seu coração. Muitos sacrificaram muito para vir a Yangon vê-lo em 2017. Foi um momento de solidariedade para a Igreja de Mianmar. Ele sentiu grande compaixão também pelos refugiados de Mianmar que conheceu em Bangladesh. Sua atenção aos refugiados é uma lição para nós, que retomaremos nosso caminho para a liberdade se prestarmos atenção aos nossos irmãos e irmãs que sofrem.

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14 abril 2022, 09:57