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Andarilho da fé, Santo Antônio hoje vive em cada imigrante

Edison: "durante dois anos, refiz boa parte dos passos antonianos. Estava eu empenhado em procurar evidências biográficas desse sacerdote franciscano nascido em Portugal que encantava multidões na Europa do século 13 e acabou se tornando o santo de predileção dos brasileiros".

Edison Veiga – Jornalista, escritor

Quando olhamos para a biografia de Santo Antônio de Pádua, cujos 790 anos de morte celebramos neste dia 13, é impossível não atentar para o fato de que ele foi um andarilho da fé, um evangelizador que não tinha receio de ir ao encontro do povo. Ou melhor: dos povos, pois sua pregação parecia desconhecer barreiras de língua e conseguia abarcar diferentes espectros culturais.

Era um mundo de distâncias muito maiores, aquele dos anos 1200. As fronteiras não tinham definições claras, países como a Itália não existiam em suas configurações atuais — eram um amontoado de feudos, burgos, pequenos Estados independentes, reinos esparsos — e, claro, tanto os meios de transporte quanto as malhas viárias estavam em patamares bastante precários.

Durante dois anos, refiz boa parte dos passos antonianos. Estava eu empenhado em procurar evidências biográficas desse sacerdote franciscano nascido em Portugal que encantava multidões na Europa do século 13 e acabou se tornando o santo de predileção dos brasileiros. O resultado de minha peregrinação está no livro ‘Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil’, recém-lançado pela editora Planeta.

Gostaria de atentar para as andanças de Antônio porque vejo em sua história também a representação de uma das imagens do mundo contemporâneo: conforme dados de 2019, pouco antes da pandemia de covid-19, 272 milhões de pessoas do planeta são imigrantes, ou seja, vivem fora do país onde nasceram.

Uma parcela significativa deste grupo, é claro, tornou-se estrangeiro por opção e é formada por pessoas que acreditam estar experimentando um padrão de vida mais interessante do que o oferecido por suas nações originais. A maior parte, contudo, é feita daqueles que emigraram forçados por uma crise: enfrentando adversidades, muitas vezes atravessando viagens precárias, não poucas vezes chegando ao novo país sem nenhum preparo e sem nada além da roupa do corpo.

É uma tragédia humanitária. A despeito de todo o sofrimento já inerente à situação, esses são os imigrantes mais sujeitos a xenofobias, perseguições políticas, religiosas e ideológicas, subempregos e toda a sorte de dificuldades de adaptação.

Desde que assumiu o pontificado, Papa Francisco, ciente do contexto socioeconômico global, tem dedicado gestos e palavras a essa questão. Não foi à toa que sua primeira viagem oficial, em julho de 2013, foi à ilha de Lampedusa, no sul da Itália — local de dramáticas, e frequentemente trágicas, cenas de imigrantes ilegais que se aventuram a cruzar o Mediterrâneo para adentrar o continente europeu.

Em mensagem divulgada recentemente, Francisco registrou, “a todos os homens e mulheres da Terra”, seu “apelo a caminharem juntos rumo a um nós cada vez maior, a recomporem a família humana, a fim de construirmos em conjunto o nosso futuro de justiça e paz, tendo o cuidado de ninguém ficar excluído”.

O papa lembrou que o futuro das sociedades precisa ser “a cores”: “enriquecido pela diversidade e as relações interculturais”. “Por isso, hoje, devemos aprender a viver, juntos, em harmonia e paz”, disse. Francisco ecoa Pentecostes, quando as pessoas de Jerusalém — não importava quais as etnias, quais as origens, pois Jerusalém já era naquela época um caldo sociocultural —, todas conseguiam entender “as maravilhas de Deus”, segundo narração dos Atos dos Apóstolos.

Francisco pede esse “ideal da nova Jerusalém”, um tempo-espaço “onde todos os povos se encontram unidos, em paz e concórdia, celebrando a bondade de Deus e as maravilhas da criação”. Mas sabe que, sobretudo em tempos bicudos, quando as muralhas do preconceito são alimentadas com tijolos do reacionarismo, das ideologias cegas, da desinformação sistemática e da polarização exacerbada, não é nada simples alcançar esse ideal. “[…] devemos todos empenhar-nos por derrubar os muros que nos separam e construir pontes que favoreçam a cultura do encontro, cientes da profunda interconexão que existe entre nós”, clama o pontífice. “Nesta perspectiva, as migrações contemporâneas oferecem-nos a oportunidade de superar os nossos medos para nos deixarmos enriquecer pela diversidade do dom de cada um. Então, se quisermos, poderemos transformar as fronteiras em lugares privilegiados de encontro, onde possa florescer o milagre de um nós cada vez maior.”

Oitocentos anos atrás, mesmo com as dificuldades de um mundo desconectado, o frade franciscano Antônio foi isso. Pregador itinerante, ele se fez estrangeiro o tempo todo. E sempre soube, ao mesmo tempo, olhar com ternura para o estrangeiro, porque via no diferente a beleza da criação, a grandeza de Deus. Rapidamente dominava os dialetos e as línguas que se lhe apresentavam, com uma erudição que não se permitia petulante; ao contrário, era leve e carismática. Imagino que ele fosse um homem de sorriso franco e sincero, que transpirasse bom-humor — similar ao jeitão característico de papa Francisco. 

Considerando apenas os registros que podem ser comprovados de alguma forma, contabilizei 37 localidades por onde esteve Santo Antônio em seus cerca de 40 anos de vida. Tendo como parâmetro a configuração geográfica contemporânea, ele andou por países como seu Portugal natal, Marrocos, França e, sobretudo, Itália. Mas não me espantaria em saber que tivesse avançado por terras onde hoje fica a Suíça, a Alemanha, a Áustria ou mesmo a Eslovênia de onde escrevo estas linhas.

Fato é que em vários cantos desse longínquo mundo de oito séculos atrás, Antônio foi forasteiro, estrangeiro, imigrante. Diferente. E se ele, sempre avesso a armas ou qualquer tipo de guerra, nem sempre foi bem-recebido, é de se admirar os esforços que empregou em se comunicar — tanto é que sua mensagem proliferou e resistiu ao crivo do tempo.

Por que tudo isso? Para mim, a resposta está não na santidade, mas na humanidade. Antônio queria ver o outro, porque o outro sempre encantou as pessoas com alma aberta. A santidade foi consequência dessa postura, em seu caso.

E a lição mais proeminente dessa biografia tão singular, uma espécie de puxão de orelhas que fica para nós, seres humanos do século 21 é a importância de olhar, não com desdém, mas com respeito, acolhimento e — por que não? — admiração para o outro, o diferente de nós. É a cultura do encontro, intensamente pedida pelo papa Francisco.

Os xenófobos de plantão podem não gostar disso, principalmente quando pretendem se considerar católicos. Mas Santo Antônio hoje está no rosto de cada um dos quase 300 milhões de imigrantes espalhados pelo planeta.

* Jornalista e escritor, Edison Veiga é autor do livro “Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava. Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil” (Editora Planeta).

 

 

 

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10 junho 2021, 15:07