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“Otimismo trágico”: balanço, gratidão e esperança

Este ano que termina foi dificílimo para toda a humanidade, porém para a maioria da população do Planeta e do Brasil, que luta pela sobrevivência diária, sem as mínimas condições de vida digna, todo dia de vida é um dia de vitória diante das persistentes incertezas da vida sofrida e vulnerada.

Dom Luiz Antonio Lopes Ricci - Bispo diocesano de Nova Friburgo

“Ainda que a figueira não floresça, nem a vinha dê seus frutos, a oliveira não dê mais o seu azeite, nem os campos, a comida; mesmo que faltem as ovelhas nos apriscos e o gado nos currais: mesmo assim eu me alegro no Senhor, exulto em Deus, meu Salvador!” (Hab 3,17-19)

Após a celebração do Natal nosso olhar se volta para o final do ano, momento de balanço pessoal e comunitário acerca das experiências vividas, comportamentos e acontecimentos relevantes, tanto os positivos, quanto os negativos. Neste ano que termina surgiu uma pandemia que parou o mundo e, ao mesmo tempo, mobilizou pesquisadores, profissionais de saúde, autoridades com poder de decisão, na busca de vacinas, medicamentos e resoluções em vista da preservação da vida e amenização dos efeitos da pandemia, especialmente na população vulnerável e empobrecida.

Não sem razão dizemos de modo uníssono: “que ano difícil”! Contudo, quase sempre, nesse período, muitas pessoas utilizam essa mesma expressão, considerando que facilmente nos esquecemos de fatos positivos e acentuamos os negativos. Na verdade, todos os anos são difíceis! Uns mais e outros menos. Este ano que termina foi dificílimo para toda a humanidade, porém para a maioria da população do Planeta e do Brasil, que luta pela sobrevivência diária, sem as mínimas condições de vida digna, todo dia de vida é um dia de vitória diante das persistentes incertezas da vida sofrida e vulnerada.

O sofrimento de toda a família humana aumentou nossa sensibilidade e comprometimento para com os “invisíveis” da sociedade. As incertezas, o medo, a insegurança, nos ajudaram a entender melhor a vida cotidiana de bilhões de seres humanos. O extraordinário para nós é o ordinário para eles. Emblemática foi a fala de um morador do Complexo da Maré, Douglas Oliveira, publicada no Jornal o Globo, em 7 de abril, que registrei no coração: “a gente convive com a realidade iminente da morte, mas uma morte visível. Agora há um perigo invisível, e isso é muito confuso. Nas favelas, dificilmente um vírus que não se vê vai assustar a ponto de colocar as pessoas dentro de casa”. Nosso desejo maior para o próximo ano é, sem dúvida, o fim da pandemia, acompanhado, é claro, do desejo de superação das injustiças sociais e desigualdades que seguem ceifando vidas. Não se trata, de modo algum, de minimizar os efeitos da pandemia, mas apenas de alargar o horizonte de reflexão, para o hoje e para o pós-pandemia. Afinal, temos e teremos sempre muito trabalho pela frente! Reiniciar ininterruptamente é preciso! Ser agradecido muito mais!

Urge recordar que o caminhar humano não é linear, mas marcado por tensões e provações. “Entre o otimismo que não sofre e o pessimismo impaciente o verdadeiro caminho do homem é este otimismo trágico no qual ele encontra sua justa medida numa atmosfera de grandeza e de luta” (E. Mounier).  A proposta de Mounier é viver o otimismo trágico, que mantêm o otimismo tão necessário, porém sem desconsiderar os dramas da vida e as inevitáveis tensões e sofrimentos, sempre ocasião de crescimento e transformação pessoal e coletiva. Otimismo adjetivado, eis a nossa proposta, e não otimismo desconectado com a realidade concreta da vida que é alegria e dor, grandeza e pequenez.

Não obstante a pandemia, dor e dificuldades, o balanço final de 2020 certamente é positivo, mesmo não tendo feito tudo o que nos propusemos a fazer no final do ano passado, tanto por conta dos nossos limites, como pelas dificuldades impostas pela pandemia.  Houve mudança de rota, mas o destino é o mesmo. Quanto aprendizado nesse período dramático! Inúmeras iniciativas surgiram, dentro e fora da Igreja, para atender aos pobres e vulneráveis. O serviço evangelizador da Igreja e as atividades caritativas prosseguiram de vários modos e maneiras, graças à incansável dedicação, fidelidade, generosidade e criatividade dos nossos padres, diáconos, leigos e leigas, nas expressões concretas do toque de Jesus e da proximidade da Igreja na vida das pessoas. Gratidão a todos e todas!

A pandemia potencializou a cultura do cuidado, nos âmbitos material, emocional, espiritual. A mensagem do Papa Francisco, para o Dia Mundial da Paz, 1° de janeiro de 2021, segue nessa direção: “escolhi como tema desta mensagem ‘a cultura do cuidado como percurso de paz’; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer. Neste tempo, em que a barca da humanidade, sacudida pela tempestade da crise, avança com dificuldade à procura dum horizonte mais calmo e sereno, o leme da dignidade da pessoa humana e a «bússola» dos princípios sociais fundamentais podem consentir-nos de navegar com um rumo seguro e comum. Colaboremos, todos juntos, a fim de avançar para um novo horizonte de amor e paz, de fraternidade e solidariedade, de apoio mútuo e acolhimento recíproco. Não cedamos à tentação de nos desinteressarmos dos outros, especialmente dos mais frágeis, não nos habituemos a desviar o olhar, mas empenhemo-nos cada dia concretamente por formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros”.

No dia 31 de dezembro do ano passado, momentos antes da procissão de entrada da Santa Missa, Dom Alano Maria Penna, Arcebispo Emérito de Niterói, me disse: “Deus hoje me oferece uma folha em branco para que eu apenas assine e permita que Ele a preencha segundo a Sua Vontade”. Tratava-se de um ato de extrema confiança em Deus e de uma breve e substancial mensagem para o início do novo ano. E foi bem assim! Quando tudo parecia bem,  “de repente, não mais que de repente”, surge um vírus, uma pandemia e um cenário de distanciamento, incertezas e mortes.

Nesse horizonte, cabe a “Oração do Abandono” de Charles de Foucauld: “Meu Pai, a vós me abandono: fazei de mim o que quiserdes! O que de mim fizerdes, eu vos agradeço. Porque é para mim uma necessidade de amor, dar-me, entregar-me em vossas mãos sem medida, com infinita confiança, porque sois meu Pai”. Abandonemo-nos Nele porque Ele nunca nos abandona: “Sim, ó Senhor! De todos os modos engrandeceste e tornaste glorioso o teu povo. Nunca, em nenhum lugar, deixaste de olhar por ele e de socorrê-lo” (Sb 19,22). Chegou a hora de mais uma vez assinar a folha em branco que o Bom Deus nos oferece e deixar que Ele a escreva como Senhor da vida e da história. Vamos permanecer unidos a Ele e unidos Nele, como a jabuticaba, colada ao tronco.

Minha sincera gratidão a todos e todas, que de diversos modos, contribuíram para salvar vidas e amenizar a dor durante este dramático momento de pandemia, certamente mobilizados por diferentes motivos, dentre eles a fé, o amor concreto e o otimismo trágico ou dramático que propomos como atitude cotidiana e certamente fecunda. Em frente com paciência e perseverança! Enfrente com coragem! “Indo e vindo, trevas e luz, tudo é Graça, Deus nos conduz!”

Feliz Novo Ano!

Com minha benção, gratidão e proximidade

Dom Luiz Antonio Lopes Ricci

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31 dezembro 2020, 09:54