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Santo Padre diante do túmulo de São Francisco Santo Padre diante do túmulo de São Francisco 

Cardeal Orani: A Encíclica social “Fratelli tutti” (V)

Possam estes longos, densos e desafiadores ensinamentos do Papa Francisco chegar a cada um de nós que desejamos um mundo mais humano e fraterno como sonharam e viveram, por exemplo, Francisco de Assis e Charles de Foucauld.

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ - Vatican News

 

Concluindo as primeiras reflexões e tentando fazer uma pequena apresentação da encíclica “Fratelli tutti”, sobre a fraternidade e a amizade social, publicada pelo Papa Francisco, tratando, de modo mais amplo do que nos artigos anteriores, do capítulo VIII – “As religiões ao serviço da fraternidade no mundo” (n. 271-287) –, pois trata da nossa vida cristã em diálogo com os demais cristãos e com as outras religiões – na sociedade e a importância da presença da religiosa no mundo.

O Santo Padre assim expõe a linha mestra do capítulo: “As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos da Índia, ‘o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor’ (Conferência dos Bispos Católicos da Índia, Response of the church in India to the present day challenges (9 de março de 2016)” (n. 271). Em outras palavras, no reconhecimento de Deus como Pai, nos vemos todos como irmãos (cf. n. 272). “Para muitos cristãos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada Maria. Ela recebeu junto da Cruz esta maternidade universal (cf. Jo 19, 26) e cuida não só de Jesus, mas também do ‘resto da sua descendência’ (Ap 12,17)” (n. 278).

Sem isso, só há devaneios que, longe de libertar, ameaçam as justas relações entre os homens ou a verdadeira fraternidade: “Nesta linha, quero lembrar um texto memorável: ‘Se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. (...) A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria’ (São João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 44: AAS 83 (1991), 849)” (n. 273).

E mais: “Julgamos que, ‘quando se pretende, em nome duma ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus direitos violados. Conheceis bem a brutalidade a que pode conduzir a privação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa, e como desta ferida se gera uma humanidade radicalmente empobrecida, porque fica privada de esperança e de ideais’ (Francisco, Discurso no Encontro Inter-religioso (Tirana – Albânia 21 de setembro de 2014): Insegnamenti II/2 (2014), 277; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 25/IX/2014), 11)” (n. 274). “Temos de reconhecer que, ‘entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes’ (Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21). Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os ateus e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria. ‘Os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora’, mas de fato ‘são desprezados pela miopia dos racionalismos’ (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123)” (n. 275).

É em nome da Lei natural moral que a Igreja tem o direito e o dever de orientar seus fiéis também no campo político. Note-se bem: não se trata da política partidária ou das formas de governo, mas, sim, dos interesses mais nobres do ser humano, ou seja, dos campos da fé e da moral, como bem escreve o Papa: “embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de ‘despertar as forças espirituais’ (Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 240) que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência (Aristóteles, Política, parágrafo 1253a, linhas 1-3) que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral. A Igreja ‘tem um papel público que não se esgota nas suas atividades de assistência ou de educação’, mas busca a ‘promoção do homem e da fraternidade universal’ (Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 11: AAS 101 (2009), 648.). Não pretende disputar poderes terrenos, mas oferecer-se como ‘uma família entre as famílias – a Igreja é isto –, disponível (…) para testemunhar ao mundo de hoje a fé, a esperança e o amor ao Senhor, mas também àqueles que Ele ama com predileção. Uma casa com as portas abertas... A Igreja é uma casa com as portas abertas, porque é mãe’ (Francisco, Discurso no encontro com a comunidade católica (Rakovsky – Bulgária 6 de maio de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 07/V/2019), 9). E como Maria, a Mãe de Jesus, ‘queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação (Idem, Homilia durante a Santa Missa (Santiago de Cuba 22 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1005)” (n. 276).

Mais: A Igreja valoriza a ação de Deus nas outras religiões e ‘nada rejeita do que, nessas religiões, existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que (…) refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens’ (Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate, 2). Todavia, como cristãos, não podemos esconder que, ‘se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher’ (Francisco, Discurso no encontro ecumênico (Riga - Letónia 24 de setembro de 2018): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 27/IX/2018), 11). Outros bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, ‘para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos’ (Idem, «Lectio divina» na Pontifícia Universidade Lateranense (26 de março de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/IV/2019), 6).

Ainda no campo sociopolítico, “como cristãos, pedimos que, nos países onde somos minoria, nos seja garantida a liberdade, tal como nós a favorecemos para aqueles que não são cristãos onde eles são minoria. Existe um direito humano fundamental que não deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões” (n. 279), assim como também “pedimos a Deus que fortaleça a unidade dentro da Igreja, unidade que se enriquece com diferenças que se reconciliam pela ação do Espírito Santo” (n. 280). Mais: “Como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspetos da nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro. A verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações” (n. 282). Aliás, o fundamentalismo terrorista pode aparecer em qualquer religião pela imprudência de seus líderes (cf. n. 283-284).

E continua Francisco: “Naquele encontro fraterno, que recordo jubilosamente, com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb ‘declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens (…). Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas’ (Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 22.)” (n. 285).

A longa encíclica, além de lembrar vários líderes de outros segmentos religiosos, conclui fazendo memória do Beato Charles de Foucauld: “O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão (cf. Carlos de Foucauld, Meditação sobre o Pai Nosso (23 de janeiro de 1897): Opere spirituali (Roma 1983), 555-562), e pedia a um amigo: ‘Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos’ (Idem, Carta a Henry de Castries (29 de novembro de 1901)). Enfim queria ser ‘o irmão universal’ (Idem, Carta a Madame de Bondy (7 de janeiro de 1902). Assim o designava também São Paulo VI, elogiando o seu serviço: Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 12: AAS 59 (1967), 263). Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amém” (n. 287; cf. n. 286).

Possam estes longos, densos e desafiadores ensinamentos do Papa Francisco chegar a cada um de nós que desejamos um mundo mais humano e fraterno como sonharam e viveram, por exemplo, Francisco de Assis e Charles de Foucauld, homens de fé e conduta santa muito valorizados, com justiça, pelo Santo Padre. Que eles intercedam por nós junto a Deus a fim de sermos cada dia melhores e fazermos o mundo também melhor...

 

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08 outubro 2020, 10:17