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Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra

Neste 5º domingo da Quaresma, cada pessoa, à luz da Palavra de Deus, é convidada a fazer uma experiência da compaixão divina, para que os limites existenciais não lhe impeçam de fazer um caminho novo, repleto da vida e do amor de Deus. Você deseja saber como acontece esse encontro entre a miséria humana e a misericórdia divina? Pegue a sua Bíblia e leia comentário a seguir. Mãos à obra!

Padre Halison Parro - Cidade do Vaticano 

Em nossa língua portuguesa, há um provérbio muito conhecido, que sofre pequenas variações a depender do local onde ele é pronunciado: “Quem tem telhado de vidro, não joga pedra no do vizinho!”. A origem dessa frase da sabedoria popular se relaciona com o desafio dirigido por Jesus aos fariseus e aos mestres da Lei no evangelho de hoje: 'Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.' (Jo 8,7). “Ter teto de vidro” significa que todos têm uma fragilidade pessoal ou um “calcanhar de Aquiles”.

Como afirma São Paulo: “Quem julga estar de pé tome cuidado para não cair” (1Cor 10,12). Neste 5º domingo da Quaresma, cada pessoa, à luz da Palavra de Deus, é convidada a fazer uma experiência da compaixão divina, para que os limites existenciais não lhe impeçam de fazer um caminho novo, repleto da vida e do amor de Deus. Você deseja saber como acontece esse encontro entre a miséria humana e a misericórdia divina? Pegue a sua Bíblia e leia comentário a seguir. Mãos à obra!

Contexto bíblico

O evangelho deste domingo (Jo 7,53-8,11) se situa no âmbito de um acirrado debate de Jesus com os seus contemporâneos no Templo de Jerusalém durante a festa judaica das Tendas (Jo 7,2). Diferentemente dos versículos anteriores, Jesus permanece em silêncio e fala ao final do episódio, somente após ser questionado insistentemente pelos fariseus e mestres da Lei sobre a atitude a ser tomada diante do flagrante adultério de uma mulher (Jo 8,6).

Em traços gerais, esse relato se assemelha a Lc 7,36-50, episódio no qual Jesus também perdoa uma mulher, que lava e enxuga os pés dele, em sinal de arrependimento. De maneira particular, nós podemos relacionar o texto de hoje aos vários temas discutidos em João 7 e 8. Nesses dois capítulos, Jesus discursa sobre o juízo divino e sobre o sentido do sábado (Jo 7,19-24).

Por esse motivo, as autoridades judaicas e os membros do Sinédrio discutem entre si sobre a necessidade de se prender Jesus e Nicodemos interroga-os sobre o direito do Senhor de ser submetido às normas de um processo jurídico, conforme previsto pela Lei (Jo 7,45-52). Nos versículos sucessivos a Jo 8,1-11, Jesus retoma o tema do julgamento (8,12-20), defendendo que o Pai testemunha e honra as obras de seu Filho.

A menção ao Monte das Oliveiras não é aleatória, já que esse local se relaciona tanto com a festa dos Tabernáculos (Zc 14,4) quanto com o juízo final. Portanto, todas essas informações iniciais já nos fornecem uma primeira pista interpretativa: refletir sobre o nosso texto a partir da diferença entre a natureza e a qualidade do juízo de Cristo e do juízo desses homens em relação à mulher adúltera.

Análise do texto evangélico 

No evangelho de hoje, devemos prestar atenção, de maneira especial, às atitudes de Jesus, pois elas nos convidam a ver o irmão pecador com os “olhos da compaixão”. Concretamente, podemos identificar-nos com cada um dos personagens dessa história (Jesus, os fariseus e mestres da Lei, a mulher adúltera) e, a partir disso, pensar nas consequências práticas para a nossa relação pessoal com Deus e com o outro.

Eixos centrais do evangelho de hoje: ensina o povo no Templo de Jerusalém (8,1-2); Jesus é testado pelos mestres da Lei e fariseus (8,3-6b), refuta os seus adversários (8,6c-8); acolhe e não condena a mulher adúltera (8,9-11)

Introdução Narrativa

Esses versículos iniciais estabelecem, narrativamente, a conclusão do primeiro debate de Jesus com as autoridades judaicas durante a festa das Tendas (7,53). Por sua vez, os vv.1-2 narram o deslocamento de Jesus para o Monte das Oliveiras, que, na perspectiva Lucas, por exemplo, era o local da oração do Senhor durante a sua estadia em Jerusalém (Lc 21,37). Em seu retorno ao Templo (Jo 18,20), Jesus se senta e ensina o povo de maneira solene (Jo 11,50; 18,14).

O narrador nos demonstra que essa era uma atitude habitual de Cristo (Jo 7,14.28.35; 8,20.28). Deve-se ressaltar que o discurso anterior de Jesus havia gerado uma divisão entre as pessoas: algumas o acolhem (Jo 7,12.31-32.40), outros o recusam (Jo 7,12.20). Nesse momento, porém, todo o povo se abre à escuta do ensinamento do Senhor (8,2a).

Naquele tempo: Jesus foi para o monte das Oliveiras; de madrugada, voltou de novo ao Templo; todo o povo se reuniu em volta dele.Sentando-se, começou a ensiná-los. (8,1-2)

Os escribas e os fariseus acusam a mulher e testam Jesus

A atividade de Jesus no Templo é interrompida pela chegada de alguns escribas e fariseus que acusam uma mulher de haver praticado adultério e, por isso, desejam aplicar-lhe as prescrições da lei mosaica. Segundo essa tradição veterotestamentária, tanto a mulher quanto o homem, flagrados em adultério, deveriam ser lapidados (Lv 20,10; Dt 22,22-24).

Por outro lado, alguns pensadores defendiam, em vez da lapidação, o estrangulamento dos dois amantes (Mischna, Sanh. XI,1.6). Em termos históricos, essa prática não deveria ser permitida em Israel na época de Jesus, porque a lei romana previa somente uma multa ou o exílio para as pessoas que praticassem essa infração legal. Vejamos o texto:

“Entretanto, os mestres da Lei e os fariseus, trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles, disseram a Jesus: 'Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu? Perguntavam isso para experimentar Jesus e para terem motivo de o acusar”. (8,3-6b)

Em primeiro lugar, o nosso texto não nos informa se a mulher foi submetida a um processo jurídico. Nada se diz sobre as provas ou sobre a existência de testemunhas. O suposto cúmplice não é mencionado nem levado até Jesus.

Por isso, ao final do episódio, a mulher afirma não ter sido condenada, porque, de fato, não houve, de forma concreta, um processo legal (8,11). O leitor deve observar que os fariseus e os mestres da Lei, na realidade, não se importam com a mulher. Ela se constitui apenas como um instrumento para se tentar colher provas contra Jesus com o claro objetivo de condená-lo, futuramente, à morte. Por isso, esses personagens se dirigem, de forma irônica, ao Senhor, com o título de “mestre”.

Eles objetivam questionar a autoridade de Jesus e de seu ensinamento ao povo (8,2). Tudo isso suscita em nós, leitores, uma pergunta: Como Jesus será capaz de superar essa armadilha e essa tentativa de desmoralizá-lo diante do povo? O Senhor se oporá à interpretação bíblica de seus adversários?

A resposta de Jesus

Em suas várias disputas com os interlocutores de seu tempo, Jesus respondia aos questionamentos de seus adversários com outra pergunta. Inicialmente, isso não é realizado em nosso texto. Na realidade, Jesus busca não se envolver com a história, porque percebe que se trata de uma armadilha.

Em termos narrativos, não podemos saber o que ele escrevia ou desenhava no chão nesse momento. Alguns autores defendem que esse gesto pode ser compreendido à luz de Jr 17,13 ou como um ato de caráter profético (Dn 5,24). Santo Agostinho propõe uma interpretação muito interessante para esse episódio.

Ele afirma que, enquanto o Decálogo foi escrito sobre a pedra, Jesus escreve na terra. Isso simboliza que a Lei não deve ser um instrumento rígido de morte, mas flexível como a areia, pois a sua leitura sempre deve considerar as circunstâncias do ato pecaminoso, bem como a situação existencial de cada pessoa.

“Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão. Como persistissem em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: 'Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.' E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão” (8,6c-8).

Diante da insistência, Jesus desarma os seus adversários com uma palavra que atinge a interioridade desses personagens. No fundo, a atitude de Cristo significa que apenas Deus tem o poder de fazer o pecador voltar, novamente, ao pó (Lc 6,36-37). Com essa reposta, Jesus, portanto, não responde diretamente ao questionamento dos fariseus e dos escribas, mas lhes mostra a partir de qual perspectiva se deve pensar sobre as falhas e os limites do outro.

Posteriormente, o Senhor demonstrará que o verdadeiro pecado consiste em não crer em sua pessoa e em sua mensagem (Jo 8,21.24ab.34ab.46; 9,41ab; 15,22ab; 16,8.9). Dentro desse contexto, Jesus não restringe o pecado somente a um ato de infidelidade conjugal, mas o relaciona a qualquer situação existencial humana, que se configure como contrária à Palavra de Deus. Por isso, nesse caso, aqueles que têm a pretensão de serem juízes devem, primeiramente, olhar para a própria fragilidade.

Antes de observar os limites do próximo, cada discípulo deve comprometer-se com Deus por meio de um processo de autoconhecimento e de sinceridade para consigo mesmo.

Em termos bíblicos, podemos dizer que o relato de hoje é muito parecido com a história de Susana (Dn 13,1-64), porém existem algumas diferenças. No livro de Daniel, narra-se que Susana, mulher de Joaquim, era uma mulher muito bela. Dois anciãos a veem passear pelo jardim e, escondidos, surpreendem-na enquanto ela tomava banho.

Eles ameaçam Susana e buscam convencê-la de praticar um ato de adultério com ambos. Ela se nega e esses dois anciãos a acusam, diante do marido, da família e da comunidade, de haver cometido uma relação extraconjugal com um jovem.

Todos creem nessa mentira, porque esses homens eram juízes. Diante da súplica de Susana a Deus, Daniel se levanta e se propõe a desmascará-los. Separando-os, Daniel os submete a um interrogatório e revela a contradição do testemunho desses homens perversos. Ao final, os dois anciãos são mortos e Susana salva por Deus.

No caso de nosso texto, o adultério da mulher é evidente e, apesar de sua culpa, as testemunhas são confrontadas por Jesus em relação a uma suposta perfeição moral e religiosa dos acusadores. Assim como Daniel, Jesus assume o papel de defensor não de uma mulher inocente como no caso de Susana, mas de uma adúltera. Por meio desse comportamento, o Senhor revela a sua misericórdia tanto à mulher quanto ao leitor do evangelho de João.

A mulher diante de Jesus

Como era previsto, os acusadores se retiram, a começar pelos mais velhos. Essa informação nos remete para a história de Susana, como já pudemos falar anteriormente. O Senhor fica sozinho com a mulher e o narrador não menciona a presença do povo que escutava o ensino de Jesus no Templo. Estes versículos confirmam que o verdadeiro contraste acontece entre a condenação hipócrita dos mestres da Lei e dos fariseus e o comportamento compassivo de Jesus em relação à mulher:

“E eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos; e Jesus ficou sozinho, com a mulher que estava lá, no meio do povo. Então Jesus se levantou e disse:
'Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?' Ela respondeu: 'Ninguém, Senhor.' Então Jesus lhe disse: 'Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais.'” (8,9-11).

Por meio de duas perguntas, Jesus dá a essa mulher a possibilidade de falar, pois até esse exato momento ela permanecia em silêncio e era objeto do olhar condenatório de todos os presentes. Jesus não a condena, pois o evangelista sintetiza, desta maneira, a missão do Senhor: “Deus não enviou o Filho ao mundo para julgá-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,15).

Como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1,29), Jesus liberta a mulher acusada e humilhada publicamente por meio de um encontro misericordioso, ensinando-nos que a Sagrada Escritura jamais deve ser instrumentalizada seja para colocar Jesus à prova, como no caso dos mestres da Lei e dos fariseus, seja para justificar a condenação das pessoas.

Nesse sentido, o evangelho de hoje nos ensina que Jesus deseja a vida e não a morte do pecador. Consequentemente, essa deve ser a atitude da Igreja e de todos os membros da comunidade cristã. Caso contrário, não transmitiremos a alegria do Evangelho às pessoas sedentas de paz e de um verdadeiro sentido para as suas vidas.

Pistas de reflexão pessoal

'Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.' (Jo 8,7)
Por meio de um exame de consciência, você seria capaz de identificar as várias pedras que você já lançou em seu próximo? Por que você fez isso? O que habitava o seu coração nesse momento: medo, inveja, sentimento de superioridade, vingança, etc.?

As suas mãos estão vazias e abertas para ajudar o pecador a fazer a experiência da misericórdia de Cristo ou cheias das pedras da intolerância, do preconceito e do orgulho interior? Você utiliza a Bíblia para ajudar as pessoas a serem libertadas por Deus ou para condenar o outro, impedindo-o de iniciar um processo de ressignificação da própria vida à luz do Evangelho?

'Mulher, onde estão eles?Ninguém te condenou?' (Jo 8,10)
Assim como a mulher do evangelho de hoje, alguma vez, você já fez a experiência de ser acusado e humilhado de maneira direta ou indireta? Quais foram as pedras que as pessoas jogaram ou pretenderam jogar em você?

Em sua opinião, por que elas tiveram esse comportamento? Por outro lado, você busca ser sincero consigo mesmo a ponto de reconhecer os seus pecados e os seus limites ou, ultimamente, você apenas tem ‘jogado a sua sujeira interior para debaixo de seu tapete’? Como você compreende a sua fragilidade pessoal? Você é capaz de integrá-la a partir da ação da graça em sua história?

'Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais.' (8,11)

Essa é a palavra de Jesus que precisamos acolher em nossos corações neste domingo, porque, para Deus, o centro jamais será o pecado ou as fraquezas humanas, mas sempre o pecador. Nesse sentido, Jesus deseja escrever, como ele fazia com aquela areia, a lei do Espírito no coração de cada um de nós, para que tenhamos a força de lutar contra mal, por meio de uma vida de fé e de amor.

Somente depois de termos sido amados e perdoados, podemos começar um novo caminho. Estamos dispostos, como aquela mulher, a ficar sozinhos com Jesus e pronunciar, ao menos, duas palavras nascidas de um coração desnudado pela misericórdia? Desejamos, de fato, trilhar uma nova relação com Deus, levando a sério o nosso discipulado e a nossa espiritualidade?
Vejamos o que o Papa Francisco nos diz:

“«Ficaram apenas eles dois: a mísera e a misericórdia» (Santo Agostinho, In Johannis 33,5): assim interpreta Santo Agostinho o final do Evangelho que acabamos de ouvir. Foram-se embora aqueles que tinham vindo para atirar pedras contra a mulher ou para acusar Jesus a propósito da Lei. Foram-se embora; nada mais lhes interessava. Mas Jesus continua... E continua, porque lá ficou o que era precioso a seus olhos: aquela mulher, aquela pessoa. Para Ele, antes do pecado, vem o pecador.

No coração de Deus, eu, tu cada um de nós vem em primeiro lugar; vem antes dos erros, das normas, dos juízos e das nossas quedas. Peçamos a graça dum olhar semelhante ao de Jesus; peçamos para ter o enquadramento cristão da vida: nele, antes do pecado, olhamos com amor o pecador; antes do erro, o transviado; antes do caso, a pessoa”. (Celebração Penitencial – 29 de março de 2019).

Um santo domingo a todos!
 

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03 abril 2019, 15:09